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Mostrando postagens de janeiro, 2023

Quem és tu, ó homem?

O homem conhece. Com os últimos progressos do saber científico, muitas coisas outrora ocultas têm sido desveladas ante seus olhos maravilhados. O nosso conhecimento do Universo, tanto em nível macrofísico quanto em nível microfísico, é admirável. Sabemos, como nunca, como funciona o mundo e o nosso organismo biológico, e avançamos no conhecimento de nossa psicologia. No entanto, todo o cabedal de conhecimento que temos adquirido revela também a face misteriosa do ser. O mundo material não está totalmente iluminado pelos raios de nossa ciência. Fala-se de grande proporção de matéria e energia escuras, de indeterminação quântica e de muitas outras coisas que desafiam a nossa busca do conhecimento. Há quem negue o realismo das ciências, reduzindo-as a um saber paradigmático que fala mais da construção teórica dos cientistas do que da constituição real das coisas. Como quer que seja, para além do saber científico, de cujas grandezas e limites hoje somos bastante conscientes, existe o estu

E o mal que nos fere?

O sofrimento é o grande escândalo, principalmente quando atinge o frágil e o inocente. Muitos veem no mal o grande empecilho para acreditar num Deus criador bondoso. Santo Agostinho (354-430) iluminou o enigma do mal do ponto de vista metafísico. Valendo-se do pensamento neoplatônico, viu que o mal não pode ser algo substancial, mas é a carência do bem ( privatio boni ). Do ponto de vista metafísico, tudo o que existe é bom, até mesmo o mais ínfimo dos entes, pois existir, ainda que na última escala do ser, é infinitamente superior ao nada. Existência e bondade são inseparáveis. A existência de um princípio do mal seria contraditória. O que chamamos de mal é uma privação no ser. Assim, em Deus, sumo Ser, não pode haver nenhuma carência; ele é o sumo Bem, sem nenhuma sombra de maldade. O mal é metafisicamente possível nos entes finitos justamente por causa da finitude, pela qual são ameaçados pelo nada. Não no sentido de que o nada possa ameaçar, já que o nada não existe, mas porque, nã

Moral da razão e do discernimento

A teologia moral de corte nominalista é voluntarista. Deus é visto como totalmente incompreensível a ponto de não haver analogia entre sua Razão e a razão humana. Assim, o que prevalece é a Vontade divina ou sua Liberdade; no nominalismo radical a substância da lei moral acaba sendo o resultado de uma pura e simples determinação dessa Vontade, isto é, uma ação é má ou pecaminosa não porque seja ruim em si mesma, mas simplesmente porque Deus a proíbe. Nesse sentido, se Deus não tivesse proibido o adultério, mas, ao contrário, o tivesse ordenado, o ato de trair o cônjuge seria virtuoso. Aqui temos uma moral da lei e da obediência.  Bem outra é a visão tomista: Razão e Vontade não se separam no único Espírito incriado, e entre a Razão divina e a razão humana há analogia, de modo que a razão humana se torna o meio para conhecer a Razão divina. A lei moral não se reduz à lei positiva, mas é alcançada pela razão prática: seu princípio é intuitivo ( Bonum faciendum atque malum vitandum ) e os

O Ser é Luz e Amor

O ser humano traz uma luz dentro de si, que lhe permite conhecer, discernir e orientar-se. É o reflexo da Luz incriada no seu interior. Ela brilha e aquece, e quer dissipar as trevas da mente e a frieza do coração. O principal obstáculo a ser vencido pela Luz é o egoísmo. Por ele, nós nos fechamos em nosso pequeno mundo, fantasioso e inconsistente; deixamos de olhar para a Fonte, que é Deus. Fechamo-nos em nossas trevas e em nossa frieza. Sofremos porque nos afastamos da Luz e ocultamos a sua luz em nós. Deus é o Ser originário e incriado. É o Infinito do qual sentimos saudades. Ele nos criou para que o busquemos livremente, cada vez mais, com a ajuda indispensável da sua graça e do seu amparo, a fim de participarmos de sua Vida luminosa e amorosa – Vida feliz! Todo o universo criado é pequeno demais para preencher o espaço infinito que constitui o nosso espírito. Desejamos, consciente ou inconscientemente, a Realidade verdadeira, a plenitude do Ser. Só Deus e nossa transformação em De

O dom da liturgia

  Um dos grandes aportes do Vaticano II foi referente à liturgia. Seguindo as indicações já feitas por Pio XII, na encíclica Mediator Dei , o concílio se distancia de uma visão prevalentemente jurídica ou estética da liturgia e apresenta-a sob um olhar decididamente teológico. A liturgia é obra do Cristo total, cabeça e membros. Cristo sacerdote associa a Igreja ao seu culto perfeito prestado ao Pai, e a Igreja atualiza no tempo e no espaço o sacerdócio de Cristo, que se transmite aos batizados. O sacerdócio de Cristo presente nos batizados se exerce no tempo e no espaço da vida quotidiana, com suas luzes e sombras, lutas e desafios, conquistas e alegrias, mas de modo particular se exerce na liturgia. O Vaticano II chega a dizer que a liturgia, sem esgotar o ser e o agir da Igreja, representa aquilo que nela há de melhor. É o cume para onde tende toda a sua ação e, ao mesmo tempo, a fonte de sua vitalidade. Eu diria que a liturgia é um espaço, preparado por Deus mesmo, para que possamo

Vito Mancuso sobre Ratzinger

TEÓLOGO DA LUZ TEÓLOGO DA IGREJA Arte. do prof. #VitoMancuso no #print de 2 de janeiro de 2023 - "Luz intelectual cheia de amor": estas são as palavras de Dante (Paradiso XXX, 40) que instintivamente me vêm à cabeça quando penso na pessoa e no pensamento de Joseph Ratzinger. Ele foi antes de tudo um teólogo. Muito antes de ser bispo, cardeal, papa, papa emérito, ele era, e nunca deixou de ser, teólogo. O hábito mental teológico nunca o deixou, e acho que foi exatamente por isso que ele renunciou ao papado, porque ser teólogo é outra coisa do que ser papa, e reconciliar os dois estados é muito difícil, acho impossível; entre todos os papas da história, não existe um que foi um verdadeiro teólogo. Exceto, claro, ele. Que tipo de teologia era a dele? Isso pode ser resumido em três adjetivos: eclesial, racional, espiritual. - Por "ecclesial" refiro-me ao fato de que a posição teológica a que Ratzinger pertenceu (compartilhada entre os teólogos católicos contemporâneos p

Ainda sobre o legado de Bento XVI

A Realidade divina ( Res divina ) é muito maior do que nossa linguagem possa expressar. Mesmo tendo as Escrituras e a tradição, tocamos de esguio o Mistério de Deus, que é recebido muito menos restritamente no silêncio contemplativo e no amor experimentado e vivido. Embora a nossa linguagem seja deficiente, é necessária e tem o seu valor e validade. Por isso a teologia é necessária. Cada teólogo tem seu estilo e procura realçar um aspecto do Mistério. Ninguém precisa concordar com tudo o que o teólogo diz, mas é interessante prestar atenção na perspectiva da qual ele procura apontar para o Mistério. J. Ratzinger é considerado justamente um dos maiores teólogos do catolicismo. Para muitos críticos que pouco ou nada leram de seus densos textos e para uma impresa mais interessada em superficialidades, o que mais aparece de sua obra são questões não centrais. o Vaticano II lembrou-nos de que há uma hierarquia de verdades. O centro da fé cristã é ocupado pela Graça incriada, que se mostrou

Discípulo de S. Tomás

Eu me considero discípulo de S. Tomás porque sigo as grandes teses do seu pensamento filosófico: a realização plena do Ser ( Esse ), perfeição máxima, em uma única e incomunicável subsistência (Deus), a distinção entre essência e ato de ser nos entes finitos, o primado absoluto do intelecto sobre a vontade, a mútua pertença entre ser e intelecto… Tomás é meu mestre também porque me ensinou a dar valor à argumentação e a procurar distinguir o que é discurso racional e o que é discurso de fé. Aprecio muito o rigor com que Tomás procurou tratar as coisas, sem ceder a um discurso talvez impressionante e esteticamente bonito, mas logicamente inconsistente ou vazio. Tomás me ensinou que o belo é tal por estar em consonância com o verdadeiro, não simplesmente porque emociona. Ainda neste tópico, Tomás me ensinou que os conceitos humanos são analógicos quando falamos (mais em termos de negação do que afirmação) do Ser subsistente, e estão mais próximos da equivocidade do que da univocidade. A

Absoluto e vias

Parece haver três grandes meios para a aproximação do Absoluto ou para deixar que ele emerja em nós como Graça : a) O caminho do serviço da caridade : pelo amor desinteressado devotado ao outro, especialmente ao necessitado (pobre, doente, prisioneiro…), o Amor se mostra cada vez pujante em nós. b) O caminho da devoção : a busca afetiva, estética,  pessoal, comunitária, litúrgica… A atenção voltada para o Eterno propicia o seu nascimento em nós. c) O caminho do discernimento intelectual . É a via preferida por quem tem pendor intelectual. Pela reflexão se alcança a certeza intelectual do Absoluto transcendente. Tal certeza se torna uma luz capaz de iluminar todas as dimensões da personalidade. No cristianismo, um Tomás de Aquino seguiu esta via. No hinduísmo, Shankara a considerava a única via que de fato é capaz de despertar definitivamente an alma, sendo as duas anteriores vias ainda incompletas. Note-se que a via do discernimento intelectual não reduz o Absoluto aos conceitos hum