O sofrimento é o grande escândalo, principalmente quando atinge o frágil e o inocente. Muitos veem no mal o grande empecilho para acreditar num Deus criador bondoso.
Santo Agostinho (354-430) iluminou o enigma do mal do ponto de vista metafísico. Valendo-se do pensamento neoplatônico, viu que o mal não pode ser algo substancial, mas é a carência do bem (privatio boni). Do ponto de vista metafísico, tudo o que existe é bom, até mesmo o mais ínfimo dos entes, pois existir, ainda que na última escala do ser, é infinitamente superior ao nada. Existência e bondade são inseparáveis. A existência de um princípio do mal seria contraditória. O que chamamos de mal é uma privação no ser. Assim, em Deus, sumo Ser, não pode haver nenhuma carência; ele é o sumo Bem, sem nenhuma sombra de maldade. O mal é metafisicamente possível nos entes finitos justamente por causa da finitude, pela qual são ameaçados pelo nada. Não no sentido de que o nada possa ameaçar, já que o nada não existe, mas porque, não sendo a Plenitude, tais entes estão sujeitos à falta em seu ser e em seu agir.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) insistiu no ponto de que o mal não é qualquer carência de ser, mas a carência do ser devido. Assim, a carência do sentido da visão na pedra não é um mal, pois não compete à natureza da pedra ver, mas no homem a cegueira é, sim, um mal, pois à natureza deste convém a visão. Há o mal físico, que diz respeito à privação de alguma coisa na natureza do ente ou na sua atuação não livre, e o mal moral, que se dá quando o agir moral – isto é, o agir consciente e livre – é privado do bem que deveria ser posto pelo livre arbítrio.
Apesar desse entendimento em nível metafísico, o problema do mal não fica resolvido. O mal nos machuca e nos faz sofrer. S. Agostinho dizia que o mal fere e prejudica (malum nocet). E mais: se Deus é bom e poderoso, por que permite o mal? Há, sem dúvida, um grande mistério que envolve a questão. No entanto, alguma coisa pode ser dita a respeito.
De um ponto de vista racional-reflexivo, pode-se dizer que Deus não pode criar a não ser entes finitos, que, por sua finitude, estarão sujeitos à carência. Se Deus cria, pode-se dizer que – perdoe-nos o leitor o antropomorfismo – assume o risco de colocar na existência entes essencialmente bons, mas passíveis de se corromper e de cair na falta, à semelhança dos pais que colocam uma criança na existência, apesar dos riscos e ameaças a que está submetida a vida no mundo. Deus só pode criar entes finitos cuja natureza traz a possibilidade da privação, mas criar é tão superior aos possíveis males, que Deus continua querendo correr o risco. Pode-se dizer ainda que Deus oferece continuamente a possibilidade de o ser humano superar os males pela força espiritual que lhe doa. Deus cria o ser humano como espírito, que é capacidade de transcendência, capacidade de tocar o Ser e o Bem: ultrapassando o espaço e o tempo, nós nos colocamos numa perspectiva superior ao quadro em que os males se dão, que é o quadro espácio-temporal. Das alturas do espírito, temos condições de ver e agir de maneira nova. Há uma notável diferença entre dor e sofrimento. A dor será inevitável, mas o sofrimento poder ser diminuído ou pode até cessar se conseguimos ver a dor a partir de uma perspectiva que lhe dá sentido.
De um ponto de vista cristão, deve-se ressaltar que Deus mesmo assumiu a natureza humana em Jesus de Nazaré para transfigurar o itinerário humano, sujeito a tantos males, com sua presença pessoal. Enfrentando de frente a morte com confiança e com espírito livre, desceu à escuridão do sepulcro, mas fez nascer do interior das trevas mais densas a luz mais potente – a ressureição! Esta não é uma simples volta à vida sujeita às limitações espácio-temporais, mas é Vida de Deus na nossa vida! Se temos de cumprir um itinerário no mundo finito, o sentido da nossa existência deságua na infinitude divina.
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