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A Luz que acende a luz

Agostinho, além de filósofo e teólogo, foi místico.  Deus está na dimensão mais profunda (e mais alta) da alma. Trata-se daquela dimensão pela qual a alma pode ver o que vê.  Se a alma vê (a consciência é um campo de visão espiritual), ela só pode ver porque é iluminada por uma Luz. A alma tem luminosidade com a qual ilumina as coisas e concebe ideias e palavras. Mas o fundamento desta luminosidade é a Luz inefável pela qual a luminosidade existe. Sobre as ideias transcendentais, a alma não as julga, mas é julgada por elas. Tais são as ideias, por exemplo, de harmonia, perfeição e, em última análise, as ideias de verdade e de ser, de máxima transcendentalidade. Tais ideias decorrem da Luz sobre a qual a alma não dispõe, mas que, ao contrário, dispõe a alma. S. Agostinho se referia a esta Luz que acende a própria luminosidade da alma nestes termos: “Reconhece, portanto, o que é a suprema conveniência: não te dirijas para fora, regressa a ti mesmo; no homem interior habita a verdade; e,
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Criação dinâmica

O homem antigo e medieval tinha uma visão do universo que era, em suma, estática. Atualmente, sabemos que o dinamismo ou a contínua transformação é a grande marca de tudo o que existe. Estrelas estão se formando agora, ao passo que outras estão se apagando. As galáxias se afastam umas das outras, e o universo se expande. Se se expande, era menos extenso no passado, o que permite aos cientistas calcular o tempo do início ou da grande explosão (Big Bang) que teria originado a dança cósmica de que hoje temos conhecimento: há cerca de 13,7 bilhões de anos, tudo o que hoje existe estaria concentrado num pequenino ponto. O próprio tempo tem a sua história, como disse o grande físico Stephen Hawking (1942-2018), pois que só começa a existir com a explosão inicial. O tempo não é sempre o mesmo, mas muda em entrelaçamento visceral com o espaço, que, por sua vez, não é o quadro vazio em que estão as coisas, mas algo que se curva ou se contorce. Por falar em tempo, o velho S. Agostinho já sabia

A prioridade do Sentido radical

  A Palavra é eterna; é Deus (cf. Jo 1,1). Acreditar em Deus significa reconhecer a prioridade do Sentido. A Palavra, que é Deus, é o Sentido ou a Razão originária. É a Luz verdadeira que ilumina todo homem (cf. Jo 1,9). Há quem acredite que o não-sentido seja prioritário ou que as trevas precedam a luz. O mundo teria vindo do caos ou da combinação de fatores meramente aleatórios. No entanto, quem sustenta a prioridade da desordem ou da pura casualidade, deve tirar a consequência de que a razão humana vem do não-racional, e a consciência, da não-consciência. Assim, o sentido que o homem consegue expressar viria do não-sentido radical. A palavra humana viria da absoluta não-palavra. Mas aqui se mostra uma incongruência: o caos, o não-sentido ou a não-razão inicial só podem ser explicados pela força da palavra e da razão, o que equivale a dizer que o não-sentido só se mostra como tal se é colocado no horizonte mais amplo do sentido, o que nos remete para a anterioridade radical do Sentid

E o fim do mundo?

"Porque a figura deste mundo passa" (1Cor 7,31). Que o mundo natural, tal como está hoje configurado, encontrará um fim, é uma verdade para a qual nos aponta a ciência. O nosso sistema solar teve início e terá um fim. Daqui a alguns bilhões de anos, o nosso Sol se transformará em uma gigante vermelha e simplesmente destruirá a Terra. No entanto, quando falamos do fim escatológico ou teológico, não estamos falando do fim segundo critérios meramente naturais ou científicos. Antes, estamos falando de uma meta — a meta do universo criado segundo Deus. O fim escatológico é a meta teológica da criação. Deus cria para salvar e para levar à plenitude a sua obra. Todo o universo receberá uma nova configuração de Deus. Muito já se especulou sobre quando se daria esse fim escatológico. Querer determinar o tempo do fim é pura perda de tempo, pois que o dia e a hora pertencem unicamente à ciência de Deus (cf. Mc 13,12; Mt 24,36; At 1,7). Muitos se fixam numa leitura fundamentalista da Bí

Sentidos da Escritura

A tradição nos ensina que se pode ler o texto bíblico para além do seu sentido imediato. Além do sentido literal ( sensus litteralis ), há o sentido espiritual ( sensus spiritualis ). O sentido espiritual desdobra-se, por sua vez, em sentido alegórico, moral e anagógico. O sentido literal não deve ser confundido com o sentido literalista, próprio das leituras fundamentalistas. O fundamentalismo bíblico não lê o texto no seu contexto, não se vale de boa exegese nem de mediação hermenêutica. Desconhece os gêneros literários e confunde muitas coisas, assumindo, às vezes, como histórico o que de fato não o é. Os onze primeiros capítulos da Bíblia, por exemplo, não tratam de historiografia. Na Bíblia há, sem dúvida, relatos de alcance verdadeiramente histórico, mas é preciso distinguir uma elaboração teológica (que é verdadeira no seu nível próprio) de um relato propriamente histórico. Muitas vezes também o texto bíblico traz um fundo histórico com elaboração teológica por cima. O sentido

A vontade deficiente e ativa. O mundo humano e o demoníaco

O mal aparece na nossa vida não apenas como ausência simples ou passiva do bem, mas também como um poder – uma eficiência – que corrompe, causando ativamente a privação do bem e, com ela, a dor e o sofrimento. Não que o mal em si mesmo possa ser algo subsistente. Agostinho e toda a tradição filosófico-teológica cristã sempre mostraram que o mal é ausência de bem. No entanto, a vontade criada, que em si mesma é boa, pode atuar de modo deficiente e, assim, promover ativamente o mal ou a desordem. Sendo Deus o Bem subsistente, nossa salvação consistirá sempre em nos abrir à sua presença e atuação. Diante de Deus, o mistério do mal não tem poder. A vontade deficiente causadora do mal pode ser humana ou não humana. Como humanos, sabemos bem como uma vontade humana deficiente (orgulhosa, soberba, fechada ao Bem, não amorosa) pode causar grandes males. A tradição cristã afirma a existência de anjos e demônios. Trata-se de criaturas espirituais não humanas, dotadas de uma capacidade intelectua

Quem és tu, ó homem?

O homem conhece. Com os últimos progressos do saber científico, muitas coisas outrora ocultas têm sido desveladas ante seus olhos maravilhados. O nosso conhecimento do Universo, tanto em nível macrofísico quanto em nível microfísico, é admirável. Sabemos, como nunca, como funciona o mundo e o nosso organismo biológico, e avançamos no conhecimento de nossa psicologia. No entanto, todo o cabedal de conhecimento que temos adquirido revela também a face misteriosa do ser. O mundo material não está totalmente iluminado pelos raios de nossa ciência. Fala-se de grande proporção de matéria e energia escuras, de indeterminação quântica e de muitas outras coisas que desafiam a nossa busca do conhecimento. Há quem negue o realismo das ciências, reduzindo-as a um saber paradigmático que fala mais da construção teórica dos cientistas do que da constituição real das coisas. Como quer que seja, para além do saber científico, de cujas grandezas e limites hoje somos bastante conscientes, existe o estu