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Ainda sobre o legado de Bento XVI


A Realidade divina (Res divina) é muito maior do que nossa linguagem possa expressar. Mesmo tendo as Escrituras e a tradição, tocamos de esguio o Mistério de Deus, que é recebido muito menos restritamente no silêncio contemplativo e no amor experimentado e vivido.

Embora a nossa linguagem seja deficiente, é necessária e tem o seu valor e validade. Por isso a teologia é necessária. Cada teólogo tem seu estilo e procura realçar um aspecto do Mistério. Ninguém precisa concordar com tudo o que o teólogo diz, mas é interessante prestar atenção na perspectiva da qual ele procura apontar para o Mistério.

J. Ratzinger é considerado justamente um dos maiores teólogos do catolicismo. Para muitos críticos que pouco ou nada leram de seus densos textos e para uma impresa mais interessada em superficialidades, o que mais aparece de sua obra são questões não centrais. o Vaticano II lembrou-nos de que há uma hierarquia de verdades. O centro da fé cristã é ocupado pela Graça incriada, que se mostrou na história em Jesus de Nazaré e que muda nossa vida e nosso existir no mundo e com os outros. As questões morais (aborto, moral sexual, eutanásia…) e institucionais da Igreja (ordenação de mulheres, descentralização do poder, que deve ser visto sempre como serviço…) só têm sentido porque giram em torno da Graça. Nem todos terão a mesmíssima visão acerca de muitas coisas dos temas mais periféricos da fé.

Pra mim, o valor de Ratzinger está em ter sido um homem de profunda reflexão, de pensamento desperto, que, a seu modo, apontou para o Centro, a Graça. E apontou com uma energia de alma e de reflexão como poucos na história. É um dos grandes nomes da atualidade que promoveu o diálogo entre fé e razão e procurou fazer ver a grande harmonia de fundo que existe entre ambas. Quem lê o livro recém publicado (ODDIFREDI, P. *In cammino alla ricerca della verità*, Mondatori, 2022) em que dialoga com o matemático ateu Piergiorgio Odifreddi, vê como Ratzinger foi uma alma aberta, capaz de entender as razões do outro, mas também extremamente lúcido e perspicaz no apresentar as suas próprias. O livro recolhe um diálogo que durou alguns anos, e mostra o contrário do que se propaga por aí sem muita consistência: faz ver um Ratzinger de fé iluminada, longe de qualquer dogmatismo. Os argumentos mais cáusticos contra a fé cristã são considerados e superados por ele, não por um gesto de autoridade, mas pela argumentação, concorde-se ou não com ela.

Um dos pontos nodais do pensamento de J. Ratzinger é a prioridade do Lógos. O lógos que habita no homem vem da matéria irracional ou a matéria vem do Lógos e é banhada por sua luz? O que é primordial, originário? O Lógos ou a matéria? 

Para Ratzinger esta é a grande questão. O cristianismo, em essência, é a opção pelo primado do Lógos. Ratzinger vê certa contradição em dizer que o primado cabe à matéria, pois só se pode fazer isso valendo-se do lógos, o que faz emergir de novo a sua originalidade radical.

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