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Conflito ético em Lima Vaz

  A relação entre conflito ético e Bem é uma das articulações centrais da ética em Henrique Cláudio de Lima Vaz. Para aprofundar essa relação, podemos organizá-la em cinco momentos interligados: ⸻ 1. O Bem como origem e fim da ética Para Lima Vaz, o Bem ( agathon ) é o princípio formal da ética. Não se trata de um bem particular, mas de um horizonte transcendental que orienta a ação moral: “Toda ação ética é, por essência, ordenada ao Bem. É na relação com o Bem que a ação se qualifica como moral.” Esse Bem, em sua forma última, é sempre mais do que qualquer bem particular ou norma determinada. Por isso, a ética é sempre uma tensão entre o ideal do Bem e sua realização histórica nas atitudes e ações boas.  ⸻ 2. O ethos como estrutura imperfeita do Bem O ethos (conjunto de normas, costumes, valores de uma cultura) é a configuração histórica do Bem, mas não o esgota. Por isso, o ethos é:  • necessário: pois oferece diretrizes concretas de ação;  • limitado: pois nun...

Deus como “Esse Subsistens”: um “conceito saturado” para a razão

Na filosofia de Santo Tomás de Aquino, uma das expressões mais densas e provocadoras do mistério divino é aquela que designa Deus como ipsum esse subsistens — o próprio Ser subsistente . Esta fórmula, que representa o cume do pensamento metafísico, não pretende, contudo, oferecer uma definição de Deus no sentido estrito e exaustivo. Antes, ela marca o limite e a elevação máxima a que a razão pode chegar no exercício de sua abertura ao ser. Com efeito, o ser ( esse ) é aquilo que primeiro se apreende pelo intelecto; é o ato mais íntimo e profundo de tudo o que é. Apreendemos o ser presente nos entes antes de reconhecermos o Ser puro subsistente como seu fundamento absoluto.  Ora, ao afirmar que Deus é o Ser subsistente, Santo Tomás quer dizer que em Deus não há distinção entre essência e ato de ser pleno, entre o que Ele é e a sua existência necessária. Ele é o próprio Ser — não como um ser entre outros, nem como um gênero supremo, mas como o Ato puro de ser, sem nenhuma composição...

Adorar a Trindade: contemplação teológica segundo o "Compendium Theologiae" de Santo Tomás de Aquino

“Credo in Deum Patrem omnipotentem… et in Iesum Christum… et in Spiritum Sanctum” ( Symbolum Fidei) ⸻ I. Deus: Mistério abissal de Ser, Luz e Amor Antes de tudo, somos conduzidos ao silêncio adorante diante de Deus, cuja essência é ato puríssimo, sem qualquer mistura de potência ou composição. “Deus est actus purus absque potentialitatis permixtione” ( Compendium theologiae , c. 28). Ele é a fonte e plenitude de todas as perfeições. E a mais alta dessas perfeições, segundo Tomás, é o inteligir: “Intelligere praecellere videtur, cum res intellectuales sint omnibus aliis potiores” (ibid.). Deus é, pois, luz infinita, inteligência plena. Mas este inteligir não é acidental, nem sucessivo, nem discursivo: é eterno, simultâneo, simples e perfeitíssimo. “Intelligentia Dei absque omni successione est” (c. 29), e seu modo de conhecer é por sua própria essência: “Non per aliam speciem, sed per essentiam suam intelligit” (c. 30). Deus é sua inteligência, e seu inteligir é sua própria vida: “Ipse ...

Uma questão eclesiológica séria

O Vaticano II usa a expressão subsistit in para falar da identidade da Igreja de Cristo com a Igreja católica entregue a Pedro e a seus sucessores. Como a expressão substitui o verbo est , tradicionalistas atacam injustamente o concílio. Entedamos o que se passa.  O teólogo que sugeriu o uso da expressão “subsistit in” no Concílio Vaticano II, especificamente no documento Lumen gentium (n. 8 ), foi Sebastian Tromp, S.J. (1889–1975). Contexto:  • Sebastian Tromp era secretário da Comissão Teológica do Concílio e exerceu grande influência na redação dos documentos, especialmente na Lumen gentium, a constituição dogmática sobre a Igreja.  • Ele foi também colaborador próximo do então Santo Ofício (atual Dicastério para a Doutrina da Fé) e teólogo profundamente influenciado pelo tomismo. A mudança de formulação: Antes do Concílio, a linguagem oficial afirmava que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica (est Ecclesia Catholica). No Vaticano II, essa formulação foi modificada...

A luz do Ser e a dinâmica do espírito: para uma leitura do Tomismo Transcendental

Joseph Maréchal foi uma grande fonte de Lima Vaz  1. Introdução No interior da tradição filosófica cristã, o tomismo se estabeleceu como uma das arquiteturas mais robustas do pensamento ocidental sobre o ser, o conhecimento e Deus. Contudo, diante das críticas modernas — especialmente o giro kantiano —, tornou-se necessário reencontrar a metafísica do ser à luz das exigências transcendentalmente fundadas do sujeito. É nesse contexto que surge o tomismo transcendental, cuja proposta central é conjugar a metafísica realista de Tomás de Aquino com a autocompreensão moderna da subjetividade. 2. O espírito como estrutura dinâmica: além do formalismo kantiano Para Joseph Maréchal, o espírito humano não é apenas um receptáculo de categorias a priori formais, como pensava Kant, mas um impulso dinâmico em direção ao ser. A inteligência é movida por uma exigência estrutural de conhecer não apenas o fenômeno, mas o ser enquanto tal — e, ao fazê-lo, ela já se encontra referida, ainda que de m...

Tomismo transcendental

A perspectiva do tomismo transcendental pra mim é interessante, pois o a priori do espírito (inteligência e vontade) não é visto como o conjunto de categorias estáticas, como em Kant, ou como ideias apenas reguladoras, mas é constituído pela própria luz formal do Ser em amplitude infinita, o que implica referi-la ao Ser absoluto, de modo que todo objeto finito de conhecimento e amor que cai sob a luz formal do Ser presente no espírito finito é constantemente ultrapassado, permanecendo como uma realização apenas parcial da potência dinâmica da atividade espiritual do homem, cujo Donde e Aonde só pode ser o Ser realíssimo.

A prova transcendente de Deus

 A seguir, apresento o núcleo lógico da prova transcendental da existência de Deus segundo J. Defever, conforme exposto no artigo La preuve transcendante de Dieu (1953), formulado como uma demonstração coerente, passo a passo, com clareza conceitual e rigor metafísico. ⸻ 🧩 Demonstração do Núcleo da Prova Transcendente de Deus segundo J. Defever 💡 Tese central A partir da reflexão total sobre a atividade espiritual do sujeito humano (conhecer e querer), é possível descobrir a presença real e necessária de uma Causa Final infinita, cuja participação torna possível todo fim finito e, portanto, o próprio movimento da consciência. Essa Causa é Deus. ⸻ 📜 Estrutura Argumentativa 1. Toda atividade espiritual é dirigida a um fim  • O ato de conhecer ou querer é sempre um movimento.  • Esse movimento visa um fim, um bem, algo que o atua e ao mesmo tempo o limita (fim finito).  • Mas o ato espiritual não se reduz a esse fim: ele tende a ultrapassá-lo. 🔁 Portanto: o fim fin...

Realismo metafísico e consciência transcendental: para uma mediação entre Tomás de Aquino e a modernidade crítica

A perspectiva trascendental de Kant pode ser lida como complemento e aprofundamento crítico da perspectiva realista de Tomás de Aquino A tradição metafísica clássica, cuja expressão mais elevada encontra-se na síntese tomista, alcançou um notável grau de inteligibilidade ao conceber o ser como ato e a inteligência como naturalmente ordenada à realidade. O realismo de Tomás de Aquino não é uma adesão ingênua ao sensível, mas uma afirmação radical da inteligibilidade do ente enquanto tal. A metafísica do ato de ser ( actus essendi ), ao reconhecer na estrutura do real a presença de uma participação finita do Ser por excelência, sustenta uma filosofia da presença e da abertura, em que o intelecto, ao conhecer, reconhece-se como participação do Intelecto absoluto, guiado e regrado pela luz infinita do ser, que é o verdadeiro Cânon do espírito, e aberto ao ser dos entes.  Entretanto, seria um erro supor que a emergência da crítica moderna – com sua atenção à subjetividade e às condiçõe...