Com efeito, o ser (esse) é aquilo que primeiro se apreende pelo intelecto; é o ato mais íntimo e profundo de tudo o que é. Apreendemos o ser presente nos entes antes de reconhecermos o Ser puro subsistente como seu fundamento absoluto.
Ora, ao afirmar que Deus é o Ser subsistente, Santo Tomás quer dizer que em Deus não há distinção entre essência e ato de ser pleno, entre o que Ele é e a sua existência necessária. Ele é o próprio Ser — não como um ser entre outros, nem como um gênero supremo, mas como o Ato puro de ser, sem nenhuma composição, sem nenhuma potencialidade, sem nenhuma limitação, sem nenhuma causa. Deus é o Ser mesmo, na sua plenitude infinita e absoluta.
Contudo, tal concepção, ainda que rigorosamente deduzida a partir dos princípios da metafísica do ente criado, não deixa de ser, para nós, um conceito saturado— para nos expressar à semelhança de alguns filósofos contemporâneos, que utilizam a expressão fenômeno saturado para indicar realidades que excedem a capacidade de representação conceitual clara e distinta. Por conceito saturado, entendo um conceito que, embora seja formulado, excede a capacidade do discurso racional de captá-lo integralmente, ou seja, o conceito é verdadeiro, pois aponta para uma Realidade encontrada no termo do processo investigativo da razão, mas não é plenamente compreensível, pois não pode ser esgotado pela razão.
Quando a razão humana, partindo da finitude dos entes e da contingência do mundo, se vê levada a reconhecer que deve haver um Ser cuja essência é o seu próprio existir infinito, ela toca o mistério do Ser que é plenitude absoluta, sem margem de não-ser, de carência, de possibilidade. Mas essa plenitude, por isso mesmo, transborda toda medida do nosso pensamento discursivo.
Ao chamar Deus de Ser subsistente, não encerramos Deus em uma definição, mas apontamos para um mistério que escapa às condições ordinárias do nosso saber. A razão, iluminada pelo princípio de que ens et verum convertuntur — o ser e o verdadeiro se convertem —, pode afirmar algo verdadeiro de Deus, mas sabe que aquilo que afirma é analógico, é participação, é aproximação. A própria expressão ipsum esse deve ser purificada de toda conotação imaginativa, de toda projeção antropomórfica, de toda limitação.
Santo Tomás, profundamente consciente disso, recorda que:
“Per viam remotionis magis in cognitionem Dei devenimus quam per viam affirmationis; et quanto plura ab eo removerimus, tanto magis ad ipsum accedimus.”
(“Chegamos mais ao conhecimento de Deus pelo caminho da remoção do que pelo da afirmação; e quanto mais removemos dele, tanto mais nos aproximamos dele”.)
A razão filosófica, ao chegar a Deus como Ser subsistente, não atinge um conceito claro e distinto no sentido cartesiano, mas um limiar, uma evidência silenciosa que nos obriga a calar e adorar. Pois o Ser sem limite é, para a nossa razão discursiva, luz excessiva: mais clareza do que podemos suportar.
Por isso, a filosofia tomista, no seu ponto mais alto, não é uma ciência fria, mas uma sabedoria aberta ao mistério. Saber que Deus é o Ser subsistente não é possuí-Lo conceitualmente, mas reconhecer que todo ser finito é participação desse Ser, e que toda verdade criada aponta para um fundamento que é, ao mesmo tempo, inefável e absolutamente real.
A linguagem filosófica aqui se curva, reverente, diante do mistério. Não se trata de renunciar à razão, mas de reconhecer sua abertura ao que a transcende. Na linha de Dionísio Areopagita, Santo Tomás diz que conhecemos a Deus em certa ignorância, mas se trata de uma ignorância que sabe que Deus, enquanto ipsum esse subsistens, é mais conhecido no silêncio da adoração do que na prolixidade dos conceitos.
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