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Física e metafísica. Päs e Tomás de Aquino

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Escritura e Tradição

A Revelação divina não coincide com a Escritura nem pode coincidir. A Revelação é uma atividade (viva) da parte de Deus, que é sua fonte, e da parte da Igreja, que é seu receptáculo. Sem a ação de Deus e sem a fé da Igreja não há Revelação. Um simples texto não pode substituir essa atividade ou essa vida.  No entanto, a Escritura é a cristalização canônica dessa atividade em sua fase fundacional; é o seu testemunho autorizado. Ela é o fruto do processo da Revelação em sua fase constitutiva, que podemos chamar Tradição (já que Deus age e o povo de Deus escuta e transmite, gerando a Tradição), e é o critério de desenvolvimento da desse processo que prossegue a sua vida, já que a Tradição, que começa no tempo fundacional ou constitutivo com os Patriarcas e Profetas para o AT e com Jesus e os Apóstolos para o NT, deve continuar viva e mostrar-se como o horizonte no qual a Igreja transmite e recebe a fé. Sem a ação do Espírito, que atualiza a autocomunicação de Deus em todo o tempo e lu...

O homem, o pecado e a redenção

  1. O homem: criado à imagem de Deus 1.1. A Dignidade da Pessoa Humana O ser humano ocupa um lugar absolutamente singular na criação. Ele foi criado “à imagem de Deus” (Gn 1,27), o que indica não apenas uma semelhança exterior, mas uma profundidade de ser: o homem é capaz de conhecer e amar livremente. Nenhuma outra criatura visível possui essa dignidade. Ele é dotado de razão e liberdade, sendo chamado a participar da vida de Deus. Esse chamado constitui a raiz de sua dignidade inalienável. “Foi por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de apreciar o vosso bem eterno” (Catecismo da Igreja Católica 356) [1] . Contudo, com o desenvolvimento das ciências da natureza (a partir do século XVII) e das ciências do homem (a partir do século XVIII), muitos estudiosos passaram a considerar impossível a formulação de uma ideia unitária do homem. O saber fragmentou-se em disciplinas como a biologia, a sociologia, a antropologia cultural, a psicologia etc., tornando dif...

Teologia da Revelação e da relação entre Escritura e Tradição segundo Ratzinger

Referência fundamental: Revelación y Tradición, de Karl Rahner & Joseph Ratzinger (Herder, 1970). ⸻ 1. A Relação entre Escritura e Tradição A relação entre Escritura e Tradição, para Joseph Ratzinger, não é de oposição, mas de complementariedade vital. Ambas são formas de presença da Palavra de Deus na Igreja, tendo uma origem comum: a Revelação divina em Cristo. A Revelação, como dom divino, antecede e fundamenta tanto a Escritura quanto a Tradição. Ratzinger insiste que a tensão criada historicamente entre Escritura e Tradição precisa ser superada por uma compreensão mais profunda, que as coloque dentro do horizonte maior da Revelação: “A questão da suficiência da Escritura é apenas um problema secundário dentro de uma decisão muito mais fundamental […]. É necessário ampliar a questão de ‘Escritura e Tradição’ para ‘Revelação e Tradição’ e inseri-la em seu contexto próprio” (Revelación y Tradición, p. 24). Assim, a Tradição não é um suplemento da Escritura, mas o espaço vital no ...

Conflito ético em Lima Vaz

  A relação entre conflito ético e Bem é uma das articulações centrais da ética em Henrique Cláudio de Lima Vaz. Para aprofundar essa relação, podemos organizá-la em cinco momentos interligados: ⸻ 1. O Bem como origem e fim da ética Para Lima Vaz, o Bem ( agathon ) é o princípio formal da ética. Não se trata de um bem particular, mas de um horizonte transcendental que orienta a ação moral: “Toda ação ética é, por essência, ordenada ao Bem. É na relação com o Bem que a ação se qualifica como moral.” Esse Bem, em sua forma última, é sempre mais do que qualquer bem particular ou norma determinada. Por isso, a ética é sempre uma tensão entre o ideal do Bem e sua realização histórica nas atitudes e ações boas.  ⸻ 2. O ethos como estrutura imperfeita do Bem O ethos (conjunto de normas, costumes, valores de uma cultura) é a configuração histórica do Bem, mas não o esgota. Por isso, o ethos é:  • necessário: pois oferece diretrizes concretas de ação;  • limitado: pois nun...

Deus como “Esse Subsistens”: um “conceito saturado” para a razão

Na filosofia de Santo Tomás de Aquino, uma das expressões mais densas e provocadoras do mistério divino é aquela que designa Deus como ipsum esse subsistens — o próprio Ser subsistente . Esta fórmula, que representa o cume do pensamento metafísico, não pretende, contudo, oferecer uma definição de Deus no sentido estrito e exaustivo. Antes, ela marca o limite e a elevação máxima a que a razão pode chegar no exercício de sua abertura ao ser. Com efeito, o ser ( esse ) é aquilo que primeiro se apreende pelo intelecto; é o ato mais íntimo e profundo de tudo o que é. Apreendemos o ser presente nos entes antes de reconhecermos o Ser puro subsistente como seu fundamento absoluto.  Ora, ao afirmar que Deus é o Ser subsistente, Santo Tomás quer dizer que em Deus não há distinção entre essência e ato de ser pleno, entre o que Ele é e a sua existência necessária. Ele é o próprio Ser — não como um ser entre outros, nem como um gênero supremo, mas como o Ato puro de ser, sem nenhuma composição...

Adorar a Trindade: contemplação teológica segundo o "Compendium Theologiae" de Santo Tomás de Aquino

“Credo in Deum Patrem omnipotentem… et in Iesum Christum… et in Spiritum Sanctum” ( Symbolum Fidei) ⸻ I. Deus: Mistério abissal de Ser, Luz e Amor Antes de tudo, somos conduzidos ao silêncio adorante diante de Deus, cuja essência é ato puríssimo, sem qualquer mistura de potência ou composição. “Deus est actus purus absque potentialitatis permixtione” ( Compendium theologiae , c. 28). Ele é a fonte e plenitude de todas as perfeições. E a mais alta dessas perfeições, segundo Tomás, é o inteligir: “Intelligere praecellere videtur, cum res intellectuales sint omnibus aliis potiores” (ibid.). Deus é, pois, luz infinita, inteligência plena. Mas este inteligir não é acidental, nem sucessivo, nem discursivo: é eterno, simultâneo, simples e perfeitíssimo. “Intelligentia Dei absque omni successione est” (c. 29), e seu modo de conhecer é por sua própria essência: “Non per aliam speciem, sed per essentiam suam intelligit” (c. 30). Deus é sua inteligência, e seu inteligir é sua própria vida: “Ipse ...

Uma questão eclesiológica séria

O Vaticano II usa a expressão subsistit in para falar da identidade da Igreja de Cristo com a Igreja católica entregue a Pedro e a seus sucessores. Como a expressão substitui o verbo est , tradicionalistas atacam injustamente o concílio. Entedamos o que se passa.  O teólogo que sugeriu o uso da expressão “subsistit in” no Concílio Vaticano II, especificamente no documento Lumen gentium (n. 8 ), foi Sebastian Tromp, S.J. (1889–1975). Contexto:  • Sebastian Tromp era secretário da Comissão Teológica do Concílio e exerceu grande influência na redação dos documentos, especialmente na Lumen gentium, a constituição dogmática sobre a Igreja.  • Ele foi também colaborador próximo do então Santo Ofício (atual Dicastério para a Doutrina da Fé) e teólogo profundamente influenciado pelo tomismo. A mudança de formulação: Antes do Concílio, a linguagem oficial afirmava que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica (est Ecclesia Catholica). No Vaticano II, essa formulação foi modificada...