Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de junho, 2025

Deus como “Esse Subsistens”: um “conceito saturado” para a razão

Na filosofia de Santo Tomás de Aquino, uma das expressões mais densas e provocadoras do mistério divino é aquela que designa Deus como ipsum esse subsistens — o próprio Ser subsistente . Esta fórmula, que representa o cume do pensamento metafísico, não pretende, contudo, oferecer uma definição de Deus no sentido estrito e exaustivo. Antes, ela marca o limite e a elevação máxima a que a razão pode chegar no exercício de sua abertura ao ser. Com efeito, o ser ( esse ) é aquilo que primeiro se apreende pelo intelecto; é o ato mais íntimo e profundo de tudo o que é. Apreendemos o ser presente nos entes antes de reconhecermos o Ser puro subsistente como seu fundamento absoluto.  Ora, ao afirmar que Deus é o Ser subsistente, Santo Tomás quer dizer que em Deus não há distinção entre essência e ato de ser pleno, entre o que Ele é e a sua existência necessária. Ele é o próprio Ser — não como um ser entre outros, nem como um gênero supremo, mas como o Ato puro de ser, sem nenhuma composição...

Adorar a Trindade: contemplação teológica segundo o "Compendium Theologiae" de Santo Tomás de Aquino

“Credo in Deum Patrem omnipotentem… et in Iesum Christum… et in Spiritum Sanctum” ( Symbolum Fidei) ⸻ I. Deus: Mistério abissal de Ser, Luz e Amor Antes de tudo, somos conduzidos ao silêncio adorante diante de Deus, cuja essência é ato puríssimo, sem qualquer mistura de potência ou composição. “Deus est actus purus absque potentialitatis permixtione” ( Compendium theologiae , c. 28). Ele é a fonte e plenitude de todas as perfeições. E a mais alta dessas perfeições, segundo Tomás, é o inteligir: “Intelligere praecellere videtur, cum res intellectuales sint omnibus aliis potiores” (ibid.). Deus é, pois, luz infinita, inteligência plena. Mas este inteligir não é acidental, nem sucessivo, nem discursivo: é eterno, simultâneo, simples e perfeitíssimo. “Intelligentia Dei absque omni successione est” (c. 29), e seu modo de conhecer é por sua própria essência: “Non per aliam speciem, sed per essentiam suam intelligit” (c. 30). Deus é sua inteligência, e seu inteligir é sua própria vida: “Ipse ...

Uma questão eclesiológica séria

O Vaticano II usa a expressão subsistit in para falar da identidade da Igreja de Cristo com a Igreja católica entregue a Pedro e a seus sucessores. Como a expressão substitui o verbo est , tradicionalistas atacam injustamente o concílio. Entedamos o que se passa.  O teólogo que sugeriu o uso da expressão “subsistit in” no Concílio Vaticano II, especificamente no documento Lumen gentium (n. 8 ), foi Sebastian Tromp, S.J. (1889–1975). Contexto:  • Sebastian Tromp era secretário da Comissão Teológica do Concílio e exerceu grande influência na redação dos documentos, especialmente na Lumen gentium, a constituição dogmática sobre a Igreja.  • Ele foi também colaborador próximo do então Santo Ofício (atual Dicastério para a Doutrina da Fé) e teólogo profundamente influenciado pelo tomismo. A mudança de formulação: Antes do Concílio, a linguagem oficial afirmava que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica (est Ecclesia Catholica). No Vaticano II, essa formulação foi modificada...

A luz do Ser e a dinâmica do espírito: para uma leitura do Tomismo Transcendental

Joseph Maréchal foi uma grande fonte de Lima Vaz  1. Introdução No interior da tradição filosófica cristã, o tomismo se estabeleceu como uma das arquiteturas mais robustas do pensamento ocidental sobre o ser, o conhecimento e Deus. Contudo, diante das críticas modernas — especialmente o giro kantiano —, tornou-se necessário reencontrar a metafísica do ser à luz das exigências transcendentalmente fundadas do sujeito. É nesse contexto que surge o tomismo transcendental, cuja proposta central é conjugar a metafísica realista de Tomás de Aquino com a autocompreensão moderna da subjetividade. 2. O espírito como estrutura dinâmica: além do formalismo kantiano Para Joseph Maréchal, o espírito humano não é apenas um receptáculo de categorias a priori formais, como pensava Kant, mas um impulso dinâmico em direção ao ser. A inteligência é movida por uma exigência estrutural de conhecer não apenas o fenômeno, mas o ser enquanto tal — e, ao fazê-lo, ela já se encontra referida, ainda que de m...

Tomismo transcendental

A perspectiva do tomismo transcendental pra mim é interessante, pois o a priori do espírito (inteligência e vontade) não é visto como o conjunto de categorias estáticas, como em Kant, ou como ideias apenas reguladoras, mas é constituído pela própria luz formal do Ser em amplitude infinita, o que implica referi-la ao Ser absoluto, de modo que todo objeto finito de conhecimento e amor que cai sob a luz formal do Ser presente no espírito finito é constantemente ultrapassado, permanecendo como uma realização apenas parcial da potência dinâmica da atividade espiritual do homem, cujo Donde e Aonde só pode ser o Ser realíssimo.

A prova transcendente de Deus

 A seguir, apresento o núcleo lógico da prova transcendental da existência de Deus segundo J. Defever, conforme exposto no artigo La preuve transcendante de Dieu (1953), formulado como uma demonstração coerente, passo a passo, com clareza conceitual e rigor metafísico. ⸻ 🧩 Demonstração do Núcleo da Prova Transcendente de Deus segundo J. Defever 💡 Tese central A partir da reflexão total sobre a atividade espiritual do sujeito humano (conhecer e querer), é possível descobrir a presença real e necessária de uma Causa Final infinita, cuja participação torna possível todo fim finito e, portanto, o próprio movimento da consciência. Essa Causa é Deus. ⸻ 📜 Estrutura Argumentativa 1. Toda atividade espiritual é dirigida a um fim  • O ato de conhecer ou querer é sempre um movimento.  • Esse movimento visa um fim, um bem, algo que o atua e ao mesmo tempo o limita (fim finito).  • Mas o ato espiritual não se reduz a esse fim: ele tende a ultrapassá-lo. 🔁 Portanto: o fim fin...

Realismo metafísico e consciência transcendental: para uma mediação entre Tomás de Aquino e a modernidade crítica

A perspectiva trascendental de Kant pode ser lida como complemento e aprofundamento crítico da perspectiva realista de Tomás de Aquino A tradição metafísica clássica, cuja expressão mais elevada encontra-se na síntese tomista, alcançou um notável grau de inteligibilidade ao conceber o ser como ato e a inteligência como naturalmente ordenada à realidade. O realismo de Tomás de Aquino não é uma adesão ingênua ao sensível, mas uma afirmação radical da inteligibilidade do ente enquanto tal. A metafísica do ato de ser ( actus essendi ), ao reconhecer na estrutura do real a presença de uma participação finita do Ser por excelência, sustenta uma filosofia da presença e da abertura, em que o intelecto, ao conhecer, reconhece-se como participação do Intelecto absoluto, guiado e regrado pela luz infinita do ser, que é o verdadeiro Cânon do espírito, e aberto ao ser dos entes.  Entretanto, seria um erro supor que a emergência da crítica moderna – com sua atenção à subjetividade e às condiçõe...

A metafísica: do ser do ente ao Ser subsistente

S. Tomás é o grande descobridor da compreensão do ser como ato intensivo 1 A metafísica como ciência do ente e do ser que o constitui A metafísica, segundo a tradição inaugurada por Aristóteles e elevada à perfeição por Santo Tomás de Aquino, é a ciência que considera o ente enquanto ente e os atributos que lhe pertencem enquanto tal ( ens inquantum ens ). Ela não estuda este ou aquele ente particular, como fazem as ciências empíricas ou matemáticas, mas investiga o que é próprio do ente em sua universalidade transcendental. “Objectum huius scientiae est ens, non secundum quod est hoc vel illud, sed secundum communem rationem entis” — In Metaphysicam , lib. 4, lect. 1, n. 540  Entende-se por ente ( ens ) tudo aquilo que é ou está sendo. No entanto, o que faz com que um ente seja de fato, o que dá existência real ao ente, é o ser ( esse ), o ato próprio e último que atualiza a essência e a torna existente. Nesse sentido, o ser ou o ato de ser ( actus essendi ) é o ato do ente. “Esse...

Somos sempre precedidos

S. Agostinho, que ensinou que somos sempre precedidos, pode ser visto como mestre da humildade ontológica.  Há em nós uma estranha impressão de novidade quando nos despertamos para o mundo. Chegamos como quem irrompe em meio a algo já em curso: não escolhemos nascer, não escolhemos o tempo, nem o lugar, nem os corpos que nos geraram. A própria vida nos é dada antes que a possamos desejar. Nesse sentido, nossa existência é sempre chegada tardia. O mundo nos precede: a linguagem nos é ensinada, nossos vínculos são herdados, as estruturas da carne e da natureza nos são prévias. Agostinho, com a sensibilidade que só os grandes têm para as verdades esquecidas, pressentiu isso de forma decisiva: venimus post — chegamos depois. A alma não é o início absoluto; ao contrário, ela encontra um mundo que a antecede e a sustenta. Isso é verdade não apenas em termos biológicos ou históricos, mas, mais profundamente, em termos espirituais e ontológicos. Pois não apenas o corpo nos antecede. Também...

Oração de petição segundo Rahner

Abaixo segue um texto estruturado com base na obra Acudir a Dios en la angustia. El sentido de la oración de petición , de Karl Rahner, sobre o sentido de rezar, de fazer uma oração de petição.  ⸻ O Sentido da Oração de Petição segundo Karl Rahner 1. Introdução: A Oração de Petição em Crise Na experiência moderna, muitos crentes e não crentes questionam a utilidade da oração de petição. “Rezei e não fui ouvido” — esse lamento ressoa através dos séculos, especialmente em contextos de sofrimento, guerra ou abandono. A oração de petição parece ineficaz, silenciosa, ignorada por Deus. Por isso, torna-se objeto de crítica, de escárnio ou de desilusão religiosa. Karl Rahner, a partir do contexto dramático do pós-guerra, enfrenta essa acusação não com respostas fáceis, mas com uma honestidade radical, que reconhece tanto a profundidade da dor humana quanto o mistério do silêncio de Deus. ⸻ 2. O Acusado: Deus ou a Oração? Segundo Rahner, a crítica à oração de petição é, em última instância...

Ser, linguagem, manifestação e interpretação

Resumo do artigo “La thèse de l’herméneutique sur l’être” de Jean Grondin (2006) Revue de Métaphysique et de Morale, n° 4, pp. 469–481 1. Problema central Grondin busca esclarecer qual é, afinal, a tese da hermenêutica sobre o ser, especialmente tal como emerge na obra de Hans-Georg Gadamer. A reflexão parte do enunciado ambíguo: “L’être qui peut être compris est langage” (O ser que pode ser compreendido é linguagem). Esse adágio pode ser entendido como:  • (a) uma tese sobre a natureza da compreensão humana (ela é sempre linguística); ou  • (b) uma tese sobre o próprio ser (o ser mesmo se manifesta na linguagem). ⸻ 2. Críticas a leituras relativistas Autores como Gianni Vattimo e Richard Rorty interpretam o adágio gadameriano de forma relativista e nominalista:  • O ser se reduz às interpretações históricas que dele fazemos.  • Não há acesso ao ser “em si”, mas apenas ao ser interpretado.  • O ser é entendido como uma construção linguística e histórica. Grondin...

Do princípio ao Absoluto: o caminho da filosofia grega à metafísica cristã

A filosofia grega, em seu ápice com Platão e Aristóteles, deu um passo decisivo na história do pensamento: descobriu que a realidade sensível não se explica por si mesma, que o mundo sensível e contingente remete a um princípio, a uma origem real inteligível. Mas esse princípio, tal como concebido por esses filósofos, ainda não era o Deus absoluto que a razão filosófica cristã posteriormente procuraria demonstrar. Em Platão, o princípio supremo é a ideia do Bem: fonte da forma inteligível dos entes, da sua inteligibilidade, mas que não é em si um ser pessoal, nem tampouco um criador no sentido próprio. O mundo sensível depende do Bem como a luz depende do Sol, mas este Bem não causa o mundo por liberdade, e sim como que por emanação ou participação necessária. A estrutura do cosmos é hierárquica e inteligível, mas o próprio cosmos é eterno: não há, portanto, um abismo ontológico entre o princípio e o mundo. Em Aristóteles, a filosofia dá um passo decisivo ao distinguir ato e potência, ...

O Deus da filosofia (verdadeira): superpessoalidade e máxima concretude

É comum, sobretudo em círculos modernos, a acusação de que o “Deus da filosofia” seria uma entidade impessoal, abstrata, distante das realidades humanas e incapaz de responder à sede de comunhão presente no coração religioso. Essa crítica, no entanto, não resiste a um exame sério, desde que se compreenda o que se entende por “filosofia” e, mais profundamente, por “verdade”. Filosofia, enquanto autêntica philosophia , não é mero exercício conceitual ou construção cultural, mas busca do real enquanto tal — amor à sabedoria, que é, em última instância, amor à verdade do ser. E a verdade não é plural ou relativa em sua raiz: ou se atinge o real, ou se permanece na aparência. Nesse sentido, somente a filosofia que alcança a verdade é, propriamente, filosofia em sentido pleno. E se é verdade que Deus é o fundamento do ser, então o Deus da filosofia verdadeira é o próprio Deus verdadeiro. Ora, este Deus, conforme a inteligência humana pode atingi-Lo por suas vias mais elevadas, não é uma abst...