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Teologia da Revelação e da relação entre Escritura e Tradição segundo Ratzinger


Referência fundamental: Revelación y Tradición, de Karl Rahner & Joseph Ratzinger (Herder, 1970).

1. A Relação entre Escritura e Tradição

A relação entre Escritura e Tradição, para Joseph Ratzinger, não é de oposição, mas de complementariedade vital. Ambas são formas de presença da Palavra de Deus na Igreja, tendo uma origem comum: a Revelação divina em Cristo. A Revelação, como dom divino, antecede e fundamenta tanto a Escritura quanto a Tradição.

Ratzinger insiste que a tensão criada historicamente entre Escritura e Tradição precisa ser superada por uma compreensão mais profunda, que as coloque dentro do horizonte maior da Revelação:

“A questão da suficiência da Escritura é apenas um problema secundário dentro de uma decisão muito mais fundamental […]. É necessário ampliar a questão de ‘Escritura e Tradição’ para ‘Revelação e Tradição’ e inseri-la em seu contexto próprio” (Revelación y Tradición, p. 24).

Assim, a Tradição não é um suplemento da Escritura, mas o espaço vital no qual a revelação acontece e a Escritura é corretamente compreendida. Ambas pertencem à mesma dinâmica do Espírito que guia a Igreja.

2. A Escritura como Tradição Escrita

A Escritura, para Ratzinger, não é algo separado da Tradição, mas é ela mesma uma forma de tradição — uma tradição escrita. A Revelação de Deus em Cristo, que é anterior ao Novo Testamento, foi transmitida inicialmente por meio da pregação apostólica e da vida da comunidade eclesial. A Escritura nasceu nesse contexto, como testemunho normativo dessa Tradição viva.

“Pode-se dar Escritura sem que haja revelação; a revelação só se torna realidade onde há fé […]. A Escritura não é a revelação, mas, no máximo, uma parte dessa realidade maior” (Revelación y Tradición, p. 26).

A Escritura é, portanto, um fruto da Tradição apostólica, e não seu substituto. Ela é expressão, não exaustiva, da Palavra viva de Deus. Nas palavras de Ratzinger:

“A Revelação transcende a Escritura na mesma medida em que a realidade transcende a notícia de si mesma” (Revelación y Tradición, p. 25).

A Escritura é, assim, inseparável da vida da Igreja e da fé que lhe deu origem. Traduz a Palavra viva em linguagem humana, mas permanece dependente do Espírito que a gerou.

3. Cristo como Revelação Plena e Critério de Interpretação

Para Ratzinger, a Revelação é o próprio Cristo — não apenas o conteúdo das Escrituras, mas uma realidade viva que se dá na história e se atualiza na fé. Por isso, a Escritura só é Palavra de Deus quando lida e acolhida na fé, que é precisamente a participação no mistério de Cristo.

“A realidade que acontece na Revelação cristã não é outra, nem outro, senão o próprio Cristo. Ele é, no sentido próprio, a revelação” (Revelación y Tradición, p. 28).

Além disso, sem fé, não há revelação. Um texto pode ser lido e compreendido em termos linguísticos, mas sua significação como Palavra de Deus só emerge na abertura da fé:

“A Revelação só se faz realidade onde há fé. […] A Revelação se dá apenas quando, além das palavras materiais que a testemunham, opera sua realidade histórica sob a forma da fé” (Revelación y Tradición, p. 26).

Portanto, o critério último da Revelação não é o texto, mas Cristo; e a condição de acesso à revelação não é a simples leitura, mas a fé que nos insere no Cristo vivo. A Escritura é norma porque testemunha esse Cristo, mas não o substitui.

4. A Função da Tradição como Chave Hermenêutica

Na Igreja primitiva, a regra de fé — isto é, o símbolo da fé (Credo) — precede de algum modo a Escritura como norma de interpretação. A fé da Igreja não nasce da leitura privada da Bíblia, mas da proclamação apostólica da fé em Cristo ressuscitado, anterior à redação dos textos canônicos.

Ratzinger observa:

“A prática eclesial e, em seu seguimento, a teologia medieval, expressaram esse fato pela superioridade da fides sobre a Scriptura, ou seja, do credo como regra da fé sobre os pormenores escritos. O credo ou símbolo da fé aparece como a chave hermenêutica da Escritura, que, sem hermenêutica, permanece, por fim, muda” (Revelación y Tradición, p. 31).

Assim, a Tradição é a instância interpretativa autêntica que torna possível compreender a Escritura em sua integridade, como Palavra de Deus e não como coleção de textos desconexos. Isso não reduz o valor da Escritura, mas a liberta de uma leitura arbitrária ou puramente racionalista.

5. A Inspiração Bíblica e o Conceito de Revelação

Ratzinger entende a inspiração bíblica como algo que acontece dentro do povo de Deus, não como um ditado mágico ou exterior, mas como fruto da ação do Espírito no seio da comunidade da fé. O texto bíblico é inspirado porque provém da fé do Povo de Deus e da fé da Igreja. A fé é resultado da Revelação que vem de Deus.

“O que confere ao texto sua qualidade inspirada não é apenas seu conteúdo, nem uma ‘palavra secreta’ vinda de fora, mas o fato de pertencer ao povo de Deus guiado pelo Espírito” (Revelación y Tradición, p. 47).

Por isso, a inspiração não se reduz a uma intervenção divina individual sobre o autor humano, mas é um processo no qual a fé viva da comunidade, iluminada pelo Espírito, acolhe e transmite como normativo aquilo que se reconhece como vindo de Deus. A inspiração é, assim, um fenômeno eclesial, histórico e espiritual.

Ao mesmo tempo, Ratzinger reforça que a revelação é maior do que a Escritura:

“A Escritura não é, em si mesma, a Revelação. A Revelação é o tornar-se conhecido de Deus. […] A Escritura é seu documento normativo e insubstituível”(Revelación y Tradición, p. 46).

Assim, a Revelação é o ato de Deus que se comunica; a Escritura é o testemunho inspirado dessa revelação, transmitido no seio da Igreja e autenticado por sua fé.

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