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Mostrando postagens de setembro, 2025

O amor como porta da Trindade: reflexões a partir do Livro VIII do De Trinitate de Santo Agostinho

Entre os quinze livros que compõem o De Trinitate , obra monumental de Santo Agostinho sobre o mistério de Deus uno e trino, o oitavo ocupa um lugar especial. Trata-se de um dos textos mais místicos de todo o tratado, marcando uma virada decisiva na obra. Até então, Agostinho havia se dedicado sobretudo a defender a fé trinitária contra as heresias e a esclarecer, à luz da Escritura e da razão, a igualdade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. No entanto, ao iniciar o Livro VIII, ele toma outro rumo: conduz o leitor ao interior da experiência do amor, mostrando que não basta conhecer teoricamente a Trindade, mas é preciso tocá-la na vida do coração. Agostinho parte de uma afirmação central: Deus é a Verdade e o Sumo Bem. Quem ama a verdade já ama a Deus, ainda que não tenha plena consciência disso. Do mesmo modo, toda busca do bem, mesmo quando dirigida a coisas passageiras, é no fundo um desejo de Deus, o Bem supremo e inesgotável. Essa convicção introduz um ponto decisivo: o conhe...

A parábola do pobre Lázaro e do rico epulão: um chamado à mudança de vida

O Evangelho deste domingo nos apresenta uma cena dramática e profundamente atual: à porta de um homem rico, que todos os dias se vestia de púrpura e linho e banqueteava esplendidamente, jazia um pobre chamado Lázaro, coberto de feridas, que desejava apenas as migalhas que caíam da mesa. Quando a morte chega para ambos, os papéis se invertem: o pobre é consolado no seio de Abraão, enquanto o rico se vê em tormento. Esta parábola pode ser contemplada a partir de dois pontos fundamentais para nossa vida cristã e comunitária. ⸻ 1. Relativizar sucessos e insucessos deste mundo A primeira lição do Evangelho é clara: nada neste mundo é definitivo. Os sucessos humanos — saúde, riqueza, fama, reconhecimento — são passageiros. Da mesma forma, os insucessos — pobreza, doença, sofrimento, abandono — não têm a última palavra. O rico epulão parecia vitorioso: rodeado de bens, de abundância e conforto. O pobre Lázaro, por sua vez, parecia derrotado: relegado à miséria, sem consolo humano. Mas a morte...

Do mundo do devir ao Ser absolutamente absoluto: um itinerário do pensamento

A filosofia ocidental nasce da exigência de compreender o ser. Platão, diante do mundo sensível, marcado pelo devir, pela transformação incessante e pela imperfeição, percebeu os limites da realidade material. Para ele, o mundo visível não pode explicar-se por si mesmo: sua contingência só se torna inteligível à luz de um mundo superior, estável e perfeito — o mundo das Ideias. Assim, o imperfeito remete necessariamente ao perfeito. Aristóteles, discípulo de Platão, volta-se de modo mais atencioso para o mundo sensível. Não nega sua inteligibilidade, mas a fundamenta em princípios racionais: a substância, a forma, a matéria, as causas. O cosmos é compreensível porque é ordenado. Contudo, esse movimento ordenado exige um fundamento último que não se move: o motor imóvel. Aristóteles não o descreve como criador, mas como ato puro, causa final de toda realidade em movimento. Com o cristianismo, a intuição filosófica do Princípio se eleva a um plano novo. Antes de tudo, o cristianismo não ...

Teologia da libertação como parte, não como o todo da teologia

A teologia da libertação, surgida em solo latino-americano e desenvolvida em diálogo com a realidade concreta de nossos povos, apresenta diferentes correntes e matizes. Não se trata de um bloco único, mas de uma pluralidade de vozes que buscam responder à mesma interrogação: como anunciar o Evangelho em contextos marcados por graves injustiças sociais? Em linha de princípio, uma reflexão teológica voltada para a libertação é não apenas legítima, mas necessária e oportuna. Em países como os da América Latina, onde a desigualdade social é gritante, a fé cristã não pode se manter indiferente diante do sofrimento dos pobres e da exclusão das maiorias. A teologia da libertação, nesse sentido, cumpre uma função crítica: questiona as causas estruturais da injustiça, examina os mecanismos de opressão, avalia os meios adequados para a superação dessas situações e defende o direito dos povos a uma libertação não apenas espiritual, mas também econômica, social e política. Nessa linha, o Papa S. J...

Nietzsche, Agostinho e a Felicidade: um debate inesperado

 O tema da felicidade percorre toda a história da filosofia, mas ganha contornos singulares quando aproximamos duas figuras aparentemente inconciliáveis: Santo Agostinho e Friedrich Nietzsche. Um, bispo do século IV, pensador cristão que marcou profundamente a teologia ocidental; o outro, filósofo do século XIX, crítico mordaz do cristianismo e da tradição metafísica. A relação entre eles pode parecer improvável, mas, como mostra Matthew Rose em seu artigo Nietzsche on Augustine on Happiness , o embate entre os dois lança luz sobre questões fundamentais da ética e da existência humana. Segundo Rose, Nietzsche leu Agostinho com uma mistura de hostilidade e fascínio. Para o filósofo alemão, Agostinho teria transformado a busca humana pela felicidade em uma experiência de negação da vida. Em vez de enxergar a felicidade como expansão da existência, Agostinho a teria concebido como repouso, quietude e passividade, um “sábado eterno” em que o ser humano já não deseja nem age. Nesse sent...

Maréchal relê Tomás na fundação transcendental da orientação da inteligência ao ser

É aqui que se encontra o coração da leitura que Maréchal faz de São Tomás: o intelecto humano é estruturalmente ordenado ao ser ( ordo ad ens ). Vou detalhar em camadas: 1. Fundamento tomista Para Santo Tomás, conhecer é receber a forma do objeto sem a matéria. • A alma intelectiva é em potência para todas as formas inteligíveis. • O intelecto agente abstrai a espécie inteligível da experiência sensível e a ilumina, tornando-a inteligível. • O intelecto possível a recebe e, assim, apreende o objeto. Logo, o intelecto não se fecha em si mesmo: sua potência está “vazia” ( tabula rasa ), aberta para ser preenchida pelas formas do real.  Note-se a respeito do intelecto agente que ele é nada, mas faz conhecer tudo. O intelecto agente é uma luz sempre em ato. Não é um objeto específico do conhecimento (não é nada), mas é a luz que ilumina e faz possível o aparecimento de qualquer objeto como “ser” para a potência intelectiva (faz conhecer tudo).  2. A noção de adaequatio...

Lei natural. Finnis e Grisez

A Lei Natural na perspectiva de John Finnis e Germain Grisez Introdução A lei natural constitui um dos pilares da tradição filosófico-jurídica ocidental, especialmente em Tomás de Aquino. No século XX, após longos períodos de marginalização pelo positivismo jurídico e pelo utilitarismo, ela foi renovada por autores como Germain Grisez e John Finnis. Ambos, em diálogo criativo com a tradição tomista e com a filosofia analítica contemporânea, elaboraram a chamada New Natural Law Theory (NNLT), que busca reconstruir a inteligibilidade da moralidade e do direito a partir dos bens humanos básicos e da razão prática. 1. A retomada contemporânea da lei natural Grisez, em seu artigo clássico The First Principle of Practical Reason (1965), reinterpretou a doutrina tomista sobre os primeiros princípios da razão prática, mostrando que eles são auto-evidentes, indemonstráveis e diretivos da ação humana. John Finnis, em Natural Law and Natural Rights (1980), consolidou esse programa, articulando a ...

Bíblia, projeção e revelação

Uma das coisas que os teólogos e exegetas sabem, mas que muitos católicos ainda resistem a admitir, é que na Bíblia há muita projeção da moralidade humana em Deus. À medida que a moralidade humana melhora, melhora a imagem de Deus. Ocorre também que uma mais fina percepção da imagem de Deus resulte numa mais elevada concepção da moralidade humana.  Isso não depõe contra a revelação. Apenas nos faz reconhecer que a revelação não deve ser pensada como um pacote que cai do céu pronto e acabado. Ela passa pela mediação humana. Ela acontece na história. Ainda mais: ela se dá historicamente. Ao estudioso não faltará a constatação de que a imagem de Deus, no conjunto geral da obra do Antigo e do Novo Testamento, evolui e purifica-se. É como se Deus mesmo estivesse sempre atraindo o homem para que este tivesse uma ideia cada vez menos inadequada de seu mistério.

A totalidade do Ser e o acesso filosófico a Deus em Lorenz B. Puntel

1. Introdução: a retomada da metafísica Lorenz B. Puntel insere-se no esforço contemporâneo de reabilitar a metafísica, mas de forma criativa, com um projeto que ele denomina de “nova metafísica”. Em vez de simplesmente repetir modelos do passado ou rejeitar a metafísica sob influência kantiana, positivista ou heideggeriana, Puntel busca um ponto de partida radical: a capacidade estrutural da mente de apreender a totalidade do ser. Esse deslocamento inicial é decisivo. A filosofia moderna muitas vezes concentrou-se na relação sujeito/objeto, nas condições da experiência ou nas linguagens que estruturam o pensamento. Puntel recorda que tudo isso já pressupõe algo mais originário: que sempre nos movemos no horizonte do ser como um todo. É essa totalidade que se torna o objeto próprio da nova metafísica. ⸻ 2. A dimensão epistemológica: o dado originário da razão A primeira tese é epistemológica: a apreensão da totalidade do ser é um fato originário da razão. Quando pensamos, não pensamos ...

Niilismo. Para começar a entendê-lo

 Segundo Nietzsche, o niilismo teria começado com Eurípedes e Sócrates na Grécia antiga. Eles começaram a racionalizar a vida, que, na sua essência, não teria nada de racional. Platão, discípulo de Sócrates, elaborou a teoria das ideias eternas e imutáveis, e, assim, teria  desvalorizado o que verdadeiramente existe: o mundo caótico do vir-a-ser.  A vida em geral, e a humana em particular, segundo Nietzsche, seria feita de vontade de poder, isto é, de tendência constante à autoafirmação. Os indivíduos fortes, com instintos saudáveis, se autoafirmariam. Já os fracos, com instintos débeis, procurariam inventar um mundo invisível (Deus e os valores morais) para compensar sua fraqueza. Nesse sentido, teriam criado o nada. Os fracos seriam os primeiros niilistas, inconscientes de sê-lo. Mas a partir da modernidade, cada vez mais se teria percebido que o mundo metafísico e teológico não se sustenta. A vontade de verdade, inculcada pelos amantes do mundo invisível, teria ironica...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...

Habermas e Ratzinger. Um diálogo imprescindível

O livro Dialéctica de la secularización. Sobre la razón y la religión , fruto do diálogo entre Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas, representa um marco no esforço de aproximar fé e razão em um mundo secularizado. Trata-se de um encontro singular, pois reúne dois pensadores que muitos consideravam intelectualmente opostos: de um lado, o teólogo então cardeal Ratzinger, defensor da centralidade da fé cristã; de outro, Habermas, expoente do pensamento laico iluminista. O tema discutido — se o Estado liberal e secularizado pode sustentar-se sem fundamentos éticos prévios — toca o coração das tensões atuais entre democracia, religião e racionalidade moderna. Habermas sustenta que o Estado democrático pode fundamentar-se a partir de uma razão autônoma e pós-metafísica, sem necessidade de recorrer diretamente às tradições religiosas. Contudo, ele reconhece que a democracia enfrenta um déficit motivacional: para existir, não basta que as normas sejam juridicamente válidas, é preciso que os cida...

Revelação histórica como captação do que Deus está sempre dizendo a todos. Uma palavra sobre a teologia de Queiruga

O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga propõe um entendimento peculiar da revelação divina, que, na sua visão, procura estar em consonância com o estágio atual dos saberes acumulados pela humanidade. Esse entendimento está, evidentemente, sujeito a críticas, principalmente por ser um entendimento novo sob muitos aspectos.  Segundo Queiruga, Deus está se doando e se comunicando totalmente desde o princípio da criação. Acontece que a criatura é finita, e só pode receber de acordo com sua capacidade. O Inteiro de Deus é recebido aos poucos, mas o processo de recepção pode crescer rumo à plenitude.  Assim, todos os povos são objeto da autocomunicação divina, mas o modo de recepção varia de uns para outros. Certamente influencia na capacidade de receber a boa vontade ou a abertura do coração, mas também as contingências e vicissitudes dos povos e indivíduos. A geografia, os acontecimentos históricos, a constituição biofísica e outros mil tipos de contingências… tudo isso entra n...

As “moradas” de S. Teresa d’Ávila

As “sete moradas” são a grande imagem espiritual usada por Santa Teresa de Ávila em O Castelo Interior para descrever o caminho da alma até a união plena com Deus. Ela compara a alma a um castelo de cristal, com muitas moradas (ou “aposentos”), no centro do qual habita Deus. O itinerário é um progresso da vida espiritual, da conversão inicial até a união mística. Aqui está um resumo de cada uma: 1ª Morada – Entrada no Castelo  • A alma começa a tomar consciência de Deus.  • Ainda presa ao pecado, às distrações e vaidades.  • É o despertar para a vida espiritual, mas sem firmeza. 2ª Morada – Início da oração e luta espiritual  • A alma começa a rezar mais e a ouvir o chamado de Deus.  • Há luta entre os apegos mundanos e o desejo de avançar.  • A oração torna-se mais regular, mas ainda difícil e cheia de distrações. 3ª Morada – Vida de virtude  • A alma já vive com esforço as virtudes (humildade, caridade, fé, esperança).  • Há uma estabilidade ma...

Níveis ontológicos

Podemos considerar vários níveis ontológicos. A realidade é multifacetada e rica de níveis distintos de profundidade. Eis três níveis fundamentais para a inteligibilidade da estrutura do ente:  a) a simples matéria , que é o de quê as coisas sensíveis são feitas. A matéria é moldável por si mesma. É o que permanece sob as diversas formas no processo das mudanças das coisas sensíveis. b) a forma , que é o contorno inteligível das coisas. É a forma que dá o ser determinado das coisas. Sem a forma, nada teria inteligibilidade; nenhum ente seria possível, pois todo ente é um ente determinado, e a determinação (inteligibilidade) vem da forma . Pode-se aqui perguntar pelo fundamento da forma. Platão disse que tal fundamento radica-se num mundo superior, puramente inteligível. Agostinho sustentou que a mente de Deus é o fundamento de toda inteligibilidade.  c) o ato de ser , que é aquilo pelo qual tudo o que existe, existe. Sem o ato de ser, nada seria efetivo . Este é o fundament...