Pular para o conteúdo principal

Nietzsche, Agostinho e a Felicidade: um debate inesperado

 O tema da felicidade percorre toda a história da filosofia, mas ganha contornos singulares quando aproximamos duas figuras aparentemente inconciliáveis: Santo Agostinho e Friedrich Nietzsche. Um, bispo do século IV, pensador cristão que marcou profundamente a teologia ocidental; o outro, filósofo do século XIX, crítico mordaz do cristianismo e da tradição metafísica. A relação entre eles pode parecer improvável, mas, como mostra Matthew Rose em seu artigo Nietzsche on Augustine on Happiness, o embate entre os dois lança luz sobre questões fundamentais da ética e da existência humana.

Segundo Rose, Nietzsche leu Agostinho com uma mistura de hostilidade e fascínio. Para o filósofo alemão, Agostinho teria transformado a busca humana pela felicidade em uma experiência de negação da vida. Em vez de enxergar a felicidade como expansão da existência, Agostinho a teria concebido como repouso, quietude e passividade, um “sábado eterno” em que o ser humano já não deseja nem age. Nesse sentido, a beatitude cristã não apareceria como o florescimento da vida, mas como a sua anestesia.

Essa crítica se torna ainda mais contundente quando Nietzsche aproxima Agostinho do ideal epicurista de tranquilidade estática: a felicidade não consistiria em fazer, mas em não mais precisar fazer. Para Nietzsche, isso significa que o cristão vive uma ilusão. Se a felicidade só pode vir de fora, como dom exclusivo da graça, então não existe ligação verdadeira entre a vida natural do homem e a sua realização plena. O resultado é uma ética que desvaloriza a ação humana, gera ressentimento e conduz ao niilismo.

No entanto, Rose mostra que essa leitura, embora penetrante, não faz justiça à riqueza da visão agostiniana. É verdade que Agostinho insiste no caráter transcendente da felicidade última, que só pode ser dada por Deus. Mas isso não significa que ele despreze totalmente a vida natural. Ao contrário, podemos encontrar em seus escritos elementos que reconhecem formas de felicidade proporcionais à condição humana criada. Há momentos em que a contemplação intelectual da ordem do ser traz alegria e paz; há também experiências de amor humano autêntico que oferecem uma felicidade genuína, ainda que limitada. Essas dimensões não substituem a beatitude sobrenatural, mas podem ser entendidas como pressupostos naturais que a graça não destrói, mas aperfeiçoa.

Assim, o confronto entre Nietzsche e Agostinho nos obriga a repensar a relação entre natureza e graça, entre vida terrena e destino eterno. Nietzsche acusa Agostinho de instaurar uma ética que aliena o homem de si mesmo e desvaloriza sua vida. Mas Rose sugere que, se reconhecermos em Agostinho a possibilidade de uma felicidade natural, essa crítica perde força. A beatitude cristã não seria ruptura absoluta com a vida, mas seu coroamento.

O que está em jogo, portanto, é a possibilidade de falar de uma felicidade natural que prepara o caminho para a plenitude da graça. Essa questão permanece aberta, talvez como uma tensão constitutiva da própria condição humana. Entre o repouso agostiniano e a afirmação nietzschiana da vida, somos convidados a refletir sobre o que significa realmente ser feliz — e sobre até que ponto a felicidade é obra nossa ou dom recebido. 

Eu, particularmente, estou do lado de Agostinho na medida em que sua posição vê a felicidade perfeita no nada fazer ou no repouso (o fazer é um sinal da limitação; só nossa cultura ativista-materialista-utilitarista pode equivocadamente perceber a superioridade absoluta do fazer sobre o repousar) e no dom (a felicidade é algo de infinito, que, propriamente dizendo, só pode ser recebido; aliás, como poderíamos alcançar o infinito se o próprio infinito não se manifestasse?). Este caráter “sobrenatural” da felicidade não nega o estágio da felicidade natural, que, embora não perfeito, prepara a alma para entrar na felicidade perfeita. No estágio da felicidade imperfeita, precisamos agir ou fazer para superar limitações que nos são próprias nesta vida e nos dispor melhor para o estágio definitivo da felicidade, o perfeito, no qual não precisamos de agir nem de fazer nada, mas somos tomados pela plenitude na qual podemos repousar e alegrar-nos sem limites. 

Texto baseado no artigo de Matthew Rose, Nietzsche on Augustine on Happiness, publicado em Studies in Christian Ethics (2017, vol. 30, n. 2, p. 170–178).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O título de Corredentora. Por que evitá-lo?

Dizer que o título de Corredentora aplicado a Maria não é tradicional, é ambíguo e deve ser evitado não significa diminuir nem obscurecer o singular papel da Mãe de Deus na história da salvação.  Maria foi ativa na obra da salvação, e o foi de maneira única e no tempo único da encarnação do Verbo, de sua paixão, morte e ressurreição. No entanto, a sua atividade é sempre uma resposta — uma resposta ativa — à graça e à absoluta iniciativa de Deus. O único autor da salvação é Deus mesmo. É o Pai, que envia o Filho e o Espírito. É o Filho, que, enviado do Pai, encarna-se por obra do Espírito e se doa até a morte de cruz, ressuscitando em seguida. É o Espírito do Pai e do Filho, que, enviado por ambos, age na Igreja e em cada coração aberto, humilde e sincero. Isso sempre foi claro para todo católico bem formado.  A disputa sobre a conveniência ou não do título Corredentora gira mais em torno de questões semânticas ou linguísticas do que sobre a importância e o lugar inquestionável...

A autoridade papal fica de pé

O episódio ocorrido na noite de Natal deste ano na Basílica de São Pedro em Roma é, de certa forma, um símbolo dos tempos atuais. O Papa, Vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, cai. A mitra, símbolo de sua autoridade, rola no chão. A férula, que representa a sua missão de pastor universal, é derrubada pelo homem moderno, desorientado, confuso e como que fora-de-si. Louca ou não, a jovem de 25 anos que provocou o incidente bem representa o mundo de hoje, que joga por terra a autoridade e as palavras do Romano Pontífice, que, na expressão da grande Santa Catarina de Siena, é «o doce Cristo na Terra». A jovem é louca? Não sei. Mas sei que o é, e muito, o mundo que rejeita Deus e o seu Cristo para abraçar o vazio e caminhar nas trevas. Bento XVI se ergue rápido e continua seu caminho. Celebra a Santa Missa, que é o que há de mais sublime sobre a face da Terra, rende o verdadeiro culto a Deus e conserva-se em seu lugar, como pastor colocado à frente do rebanho pelo Pastor Eterno, ...

Memória de Santo Tomás de Aquino

. Homilia proferida por mim na festa de Santo Tomás de Aquino em Missa celebrada no Instituto Cultural Santo Tomás de Aquino, de Juiz de Fora, MG, do qual sou membro. Pe. Elílio de Faria Matos Júnior Prezados irmãos e irmãs na santa fé católica, Ao celebrarmos a memória de Santo Tomás de Aquino, patrono de nosso instituto, desejo reportar-me às palavras que o santo doutor, tomando-as emprestadas de Santo Hilário, escreveu logo no início de uma de suas mais importantes obras, a Summa contra gentes , e que bem representam a profunda espiritualidade do Aquinate e a vida mística que envolvia sua alma. Sim, Santo Tomás, além de filósofo e teólogo, homem das especulações profundas e áridas, era também um santo e um místico, homem da união com Deus. São estas as palavras: “Ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum, ut eum omnis sermo meus et sensus loquatur” , isto é, “Estou consciente de que o principal ofício de minha vida está relacionado a Deus, a quem me ...