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Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir (Ipsum Esse), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma...

Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingente como é porque sujeito à potencialidade, seria o próprio ato de existir (ipsum esse subsistens), o que é falso.

O universo criado, desse modo, já que não pode possuir a existência por si mesmo, só pode estar fora do nada (ex-sistere) por uma Causa que existe por si mesma e possa conceder-lhe a existência. Isso significa dizer: só Deus existe por si mesmo (a se) e tudo que não é Deus só pode vir ao ser (existir em ato) por influência do próprio Deus. Em sentido estrito, só Deus pode criar. Criar, em sentido estrito, é produzir o ser em toda a sua substância, é tirar do nada (ex nihilo).

A Sagrada Escritura e a Tradição cristã ensinam claramente a doutrina da criação a partir do nada (creatio ex nihilo)[1]. É interessante notar que, embora não fosse de todo impossível à razão natural ascender à essa verdade, ela, de fato, sozinha, não o fez. O conceito de criação nós o recebemos da Revelação judaico-cristã. A Filosofia, depois, se apropriaria dela e desenvolveria reflexões metafísicas de altíssimo rigor intelectual, reflexões estas cuja expressão canônica encontramos em Santo Tomás de Aquino com seu conceito intensivo de esse como ato, que convém propriamente só ao Absoluto[2]. A Revelação, assim, prestou enormes auxílios à razão, tirando-a dos embaraços que a impediam de chegar com precisão ao conceito de criação[3]. Destarte, como afirma Santo Tomás, seguido pelos Concílios do Vaticano I e II, a Revelação divina foi moralmente necessária para atingirmos verdades que, de per si, poderiam ser alcançadas pela razão natural[4].  

A noção de criação, portanto, é a grande novidade à qual o mundo teve acesso graças à Revelação judaico-cristã. É uma noção que revolucionou a própria Filosofia. O conceito de criação, contudo, parece causar perplexidade a não poucos, mormente àqueles que integram o meio científico. Faz-se necessário, por isso, dialogar com as ciências para que se torne claro que o conceito de criação não é incompatível com o que as ciências experimentais podem dizer a respeito da realidade, uma vez que o método filosófico-teológico, que afirma a criação, é de ordem totalmente diversa do método científico. As ciências naturais enquanto permanecerem fiéis ao método que lhes é próprio, nada têm a opor ao conceito de criação entendido em seu sentido metafísico de produção de todo o ser da criatura a partir do nada.



[1] Pretendemos tratar dos dados da Sagrada Escritura e Tradição num próximo artigo.

[2] Cf. Gilson, Étiénne. Deus e a filosofia. Lisboa:  Edições 70, 2003, p. 41-60.

[3] "A noção de criação é uma das noções-chave entre as que constituem o núcleo teórico da filosofia cristã. Ela é teológica pela sua origem histórica na revelação bíblica e é filosófica pelo seu conteúdo inteligível que a razão humana pode apreender e exprimir em categorias metafísicas. A noção de criação oferece-nos, assim, uma instância exemplar da dialética fé-razão" (Lima Vaz, Henrique C. de. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p.133).

[4]  Santo Tomás afirma: "O gênero permaneceria nas maiores trevas de ignorância se apenas a via da razão lhe fosse aberta para o conhecimento de Deus, visto que, poucos homens, e somente após longo tempo, chegariam a este conhecimento, que os faz ao máximo perfeitos e bons. (...) foi conveniente que por via da fé se apresentassem aos homens a firme certeza e a pura verdade das coisas divinas" (Contra Gentes  I,4). Veja o que diz o Vaticano II, que, por sua vez, cita o Vaticano I: "(...) ensina [o Sagrado Sínodo] que se deve atribuir à Sua Revelação o fato de 'mesmo na presente condição do gênero humano poderem ser conhecidas por todos facilmente com sólida certeza e sem mistura de nenhum erro aquelas coisas que em matéria divina não são de per si inacessíveis à razão humana'" (Dei Verbum, n.6).

Comentários

  1. Caro Pe. Elílio,

    tenho algumas dúvidas:

    1) O método científico só aceita como verdade, ou como real, aquilo que pode ser entendido clara e distintamente pelo cientista. Se algo ou alguma idéia possui alguma característica nebulosa, envolta em dúvidas, o cientista não pode considerá-la necessariamente verdadeira. A partir daí, como conciliar os conceitos teológicos, que necessitam da fé, com o método científico?

    2) Quando um homem, um escritor, cria um personagem de romance, ele transfere a esse personagem algo de sua existência? O homem é capaz de fazer essa transferência? Há coisas que possuem apenas essência, sem existência, ou apenas existência, sem essência? Que aspectos das coisas o homem pode perceber: a existência, ou a essência ou ambos?

    Talvez a pergunta 2) seja muito abrangente. Se o senhor puder indicar um livro...

    Obrigado.

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  2. Caro Marcelo,

    O método das ciências naturais exige a verificação empírica, sem a qual não se pode falar de ciência natural. O método filosófico tem como ponto de partida a experiência, os dados sensíveis, mas não fica por aí; pelo uso ordenado da razão, o filósofo ultrapassa o mundo da natureza e é capaz de chegar a uma Realidade transempírica, que é o fundamento mesmo da natureza. Já o método teológico exige a fé na Revelação divina. Não há necessariamente incompatibilidade entre esses três métodos - ou entre ciências, Filosofia e Teologia - porque os pontos de vista são diversos. Na verdade, as ciências tentam explicar como funciona o mundo natural. Já a Filosofia (pela simples razão) e a Teologia (pela fé) vão mais longe e colocam a questão: Por que existe o mundo natural? Por que existe algo em vez do nada?

    2) O homem não pode dar o ser - o ato de existir - a nada. Ele apenas trabalha com o que já existe - com o que já possui o ato de ser. A chamada "criação" artística supõe já a existência. Só Deus pode dar o existir, isto é, tirar do nada, já que só Ele é a Existência mesma.O homem pode, por reflexão, chegar ao conhecimento do ser como ato de existir, ultrapassando, assim, o mero conhecimento das essências. Qualquer essência só pode existir realmente em virtude do ato de existir, que S. Tomás chamava "esse", sem o qual ela permanece pura possibilidade.

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  3. Padre Emílio,

    É notória sua erudição filosófica. Isso despertou meu interesse no seu blog. Gostaria de entender melhor como o senhor busca harmonia entre a filosofia conhecida e a teologia eclesiástica professada. Como o assunto é delicado e muitas vezes envolve questões pessoais profundas, adianto-lhe que faço minhas considerações de maneira tolerante e respeitosa, buscando o crescimento pessoal pela oposição de pensamentos e não a mera "pregação" de minhas idéias ou constestação descabida de idéias alheias.

    Comecemos então: Você parece concordar com Spinoza, Hermes do Egito e até mesmo com o espírito da filosofia oriental ao afirmar que Deus é o Todo Essente. O problema é que em seguida você sai pela tangente da filosofia desses pensadores e defende a criação ex nihilo (do nada), também confusamente defendida por Santo Agostinho, um ex-neoplatônico.

    Por isso, pergunto: Se Deus é o Todo, como pode haver um Nada, além do Todo em que poderiamos emergir? Em outras palavras, como pode haver dois infinitos? O nada, de onde viemos, e Deus? Qualquer tipo de delimitação entre estes infinitos (transcedental ou não) tornalos-ia finitos! É lógico, portanto, assumir a existência como uma manifestação imperfeita da Perfeição, uma diminuição do Todo, mas jamais como um aumento do nada! Se somos então, manifestações do Todo, esse Todo faz parte de nós. Ou seja: Deus não seria transcendental, mas sim imanente em toda existência. O problema aqui é claro: Qualquer tipo de instituição eclesiástica não passaria de uma falsa autoridade, uma vez que a harmonia com o Universo, com o Todo, o atingir a Deus, só poderia ser conseguida de forma instrospectiva, atingindo a essência Divina dentro de cada um. Isso reduziria a igreja à uma gigantesca instituição de auto-ajuda.

    Isso pra não falar em céu, inferno e etc. Levando adiante o argumento exposto acima, para ser lógicos, eles teriam que (EX)istir, de forma imperfeita e finita, podendo assim ser alcançados físicamente (até pela ciência) caso contrário, seriam indistinguíveis do Infinito, do Todo, de Deus.

    A pergunta real é: Como você lida com essas questões lógicas em sua filosofia de vida?

    Abraços.

    Carlos H.

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  4. Prezado Carlos,

    Desculpe-me pelo atraso em responder-lhe. Só agora pude ver sua postagem.

    Sim, você diz acertadamente que não pode haver dois infinitos. Isso seria ilógico, pois um infinito limitaria o outro - o que é absurdo.

    Acontece, porém, que a noção de criação não supõe nenhum infinito real, a não ser Deus. O termo "creatio ex nihilo" deve ser bem entendido. O "nada" não é algo de que Deus tira a criação, nem é em virtude do nada que as coisas são criadas, pois do nada, nada se faz (ex nihilo nihil fit). O "ex nihilo" deve ser entendido como a produção das coisas finitas, pelo poder de Deus, após um nada de existência finita.

    Assim como o fogo, sendo quente, pode comunicar o calor, de modo análogo, Deus, sendo a Existência mesma, pode comunicar o ato de existir a entes que antes não existiam absolutamente. E só Deus pode comunicar o ser, pois só ele existe em virtude de si mesmo.

    A produção das coisas criadas não acrescentam nada a Deus, como se o mundo criado pudesse ser somado à perfeição divina. Deus sozinho já é a perfeição infinita, à qual nada se pode acrescentar. As criaturas são participações finitas e limitadas da perfeição infinita e ilimitada. Daí S. Tomás dizer que não há relação real de Deus para com as criaturas, no sentido de que Deus, por ultrapassar infinitamente as perfeições participadas das criaturas, não pode ser entendido por relação a elas.

    Quanto à filosofia e à fé católica que professo, devo dizer-lhe que, aceitando como razoável a Revelação de Deus transmitida pela Igreja, não posso ver incompatibilidade entre minha fé e o que a razão bem dirigida pode alcançar filosofando, já que o mesmo Deus é tanto o autor da fé como o criador da razão humana.

    À disposição,

    Pe. Elílio

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  5. Boa tarde. Sou pastor Batista Brasileiro. Gostei muito do texto. Parabéns.

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