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Se Deus existe, por que o mal?

O artigo (leia-o aqui) Si Dieu existe, pourquoi le mal ?, de Ghislain-Marie Grange, analisa o problema do mal a partir da teologia cristã, com ênfase na abordagem de santo Tomás de Aquino. O autor explora as diversas tentativas de responder à questão do mal, contrastando as explicações filosóficas e teológicas ao longo da história e destacando a visão tomista, que considera o mal uma privação de bem, permitido por Deus dentro da ordem da criação.

1. A questão do mal na tradição cristã

A presença do mal no mundo é frequentemente usada como argumento contra a existência de um Deus onipotente e benevolente. A tradição cristã tem abordado essa questão de diferentes formas, tentando reconciliar a realidade do mal com a bondade e a onipotência divinas.

1.1. A tentativa de justificar Deus

Desde a Escritura, a teologia cristã busca explicar que Deus não é o autor do mal, mas que ele é uma consequência da liberdade das criaturas. No relato da queda do homem (Gn 3), o pecado de Adão e Eva introduz o mal na criação, que originalmente era boa. Essa visão enfatiza que o culpado não é Deus, mas o homem, que desestabilizou a harmonia do mundo.

O livro de Jó aprofunda essa questão. Jó, um homem justo, sofre imensamente sem motivo aparente. Seus amigos tentam convencê-lo de que ele deve ter pecado, mas Jó mantém sua inocência. O verdadeiro problema que o livro apresenta não é tanto a situação de Jó, mas a questão de como Deus governa o mundo e por que permite o sofrimento dos justos. No final, Jó não recebe uma explicação racional, mas reafirma sua confiança na soberania divina (“Eu sei que tu és todo-poderoso”, Jó 42,1). A mensagem central é que o mal só faz sentido dentro de uma ordem maior conhecida por Deus, mas não inteiramente acessível ao homem.

Santo Tomás de Aquino retomará essa ideia, afirmando que a existência do mal não é um argumento contra Deus, mas um indicativo de que existe uma ordem no mundo. Se há um mal, é porque há um bem negado por ele – e se há um bem, isso sugere a existência de um Criador que fundamenta essa ordem. A percepção do mal supõe a anterioridade da exigência do bem, que tem seu fundamento em Deus, o Bem absoluto. Só posso perceber o mal porque já me encontro na ordem do bem. 

1.2. Os excessos da teodicéia

A tentativa de defender a inocência de Deus deu origem à teodicéia, um campo filosófico que busca justificar racionalmente a coexistência de Deus e do mal. No século XVII, Leibniz desenvolveu uma das versões mais conhecidas dessa abordagem em sua obra Essais de théodicée, argumentando que Deus criou “o melhor dos mundos possíveis”. Segundo ele, o mal faz parte do conjunto necessário para que o universo atinja sua perfeição total. O que consideramos “mal” não passa de uma limitação da nossa perspectiva. Note-se que o conceito de “melhor mundo possível” é contraditório, pois o mundo é essencialmente finito, e, como tal, sempre pode ser acrescido de algum bem, por melhor que se o considere. Só o Infinito não pode receber acréscimo. 

Essa explicação foi alvo de críticas, especialmente de Voltaire, que ridicularizou Leibniz em Candide, mostrando o personagem Pangloss justificando absurdos como guerras e desastres naturais sob a lógica de que tudo contribui para um bem maior. O racionalismo extremo da teodicéia acabou sendo rejeitado por muitos teólogos, pois ignora o mistério do sofrimento e a necessidade de uma resposta existencial ao mal.

1.3. O mal como mistério

Em oposição à teodicéia, alguns filósofos, como Gabriel Marcel, afirmam que o mal não é um problema a ser resolvido racionalmente, mas um mistério a ser aceito. Segundo ele, tentar reduzir o mal a um problema lógico significa vê-lo como algo externo a nós, quando, na verdade, ele nos envolve. Para Marcel, a resposta ao mal não é teórica, mas existencial: devemos enfrentá-lo por meio da solidariedade e da ação prática.

Essa abordagem influenciou parte da teologia contemporânea, levando alguns teólogos a evitar explicações racionais sobre o mal. No entanto, o autor argumenta que essa solução pode ser insatisfatória, pois ignora a busca legítima por um entendimento mais profundo do papel do mal dentro da ordem divina.

2. A resposta de santo Tomás de Aquino

A solução de santo Tomás para o problema do mal evita tanto o racionalismo excessivo da teodicéia quanto o agnosticismo existencialista. Ele não trata do mal ao discutir os atributos divinos (como bondade e onipotência), mas no contexto da ordem das criaturas dentro da criação.

2.1. A solução estética

Antes de Tomás, os estoicos e os neoplatônicos, como Plotino, já haviam argumentado que o mal faz parte da harmonia do universo, como a sombra em um quadro realça a luz. Aplicado ao campo moral, isso significa que sem pecado não haveria redenção, sem sofrimento não haveria heroísmo, e sem doença não haveria médicos.

Santo Agostinho aceita parcialmente essa ideia, mas a reformula: Deus não quer o mal, mas permite sua existência porque ele pode transformá-lo em um bem ainda maior. Esse princípio aparece na tradição cristã, especialmente na felix culpa (“feliz culpa”), conceito segundo o qual o pecado original foi permitido para que Cristo pudesse redimir a humanidade.

2.2. O mal como privação do bem

Tomás de Aquino segue essa linha, afirmando que o mal não é uma substância, mas uma ausência de bem. Ele não tem existência própria, mas é uma deficiência dentro da criação, como um buraco em um tecido. Isso significa que o mal não pode ser um princípio autônomo (como acreditavam os maniqueus), mas sempre depende do bem.

Tomás distingue dois tipos de mal:

Mal físico (ou de pena): sofrimento, doenças, catástrofes naturais.

Mal moral (ou de culpa): o pecado e a perversidade humana.

O primeiro é consequência da natureza material e corruptível do mundo, enquanto o segundo decorre do livre-arbítrio das criaturas racionais.

2.3. A permissão divina do mal

Se Deus é todo-poderoso, por que ele não impede o mal? Tomás responde que Deus permite a existência de criaturas que podem falhar porque o livre-arbítrio (capacidade de escolher um bem menor quando se deveria escolher o bem maior), a diversidade (uns esbarrando-se nos outros e até os destruindo) e a limitação (capacidade de falhar) são partes essenciais da criação. Se tudo fosse perfeito desde o início, não haveria mérito nem progresso.

Além disso, Deus permite o mal porque pode dele extrair um bem maior. Isso se vê de forma suprema na Paixão de Cristo: a morte injusta do Filho de Deus levou à salvação da humanidade. Assim, o mal nunca escapa ao controle divino, mas é sempre subordinado a um plano maior.

3. Conclusão

Santo Tomás não resolve o problema do mal de forma absoluta, mas oferece um enquadramento que evita tanto a ingenuidade da teodicéia quanto o pessimismo existencialista. Ele nos convida a reconhecer que o mal, embora real, não tem existência independente, e que Deus, em sua sabedoria, sabe transformar as quedas em oportunidades para um bem superior.

O mistério do mal nos desafia a confiar na providência divina. Ainda que não possamos compreender plenamente cada sofrimento individual, a fé cristã nos assegura que Deus governa o mundo com justiça e que, no fim, o mal será definitivamente vencido. A Cruz de Cristo é a resposta final a esse mistério: Deus não se mantém distante do sofrimento humano, mas entra nele para redimi-lo.

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