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A noção de ser na metafísica de João Duns Scot

Com base nos três artigos de Hilaire Mac Donagh publicados entre 1928 e 1929 na Revue néo-scolastique de philosophie, é possível compor um resumo contínuo e estruturado da análise feita pelo autor sobre a noção de ser na metafísica de João Duns Scot, com atenção especial às críticas desenvolvidas ao longo do estudo.

A noção de ser na metafísica de João Duns Scot, segundo Hilaire Mac Donagh


1. A centralidade do conceito de ser

Hilaire Mac Donagh inicia sua análise destacando a importância do conceito de ser como núcleo organizador da metafísica de Duns Scot. Tal como em Aristóteles e na tradição escolástica, o objeto próprio da metafísica é o ente enquanto ente (ens inquantum ens), e Scot segue essa orientação, atribuindo à metafísica a tarefa de conhecer o ser e seus atributos transcendentais. No entanto, ao aprofundar a concepção scotista do ser, o autor observa uma particularidade essencial: a insistência de Scot na univocidade do conceito de ser, inclusive quando aplicado a Deus e às criaturas.


2. Origem e estrutura do conceito de ser

Para Scot, a noção de ser tem origem no conhecimento sensível, mediante um processo de abstração. A inteligência, ainda que dependente dos sentidos no estado presente, tem como primeiro objeto próprio o ens commune, o ser em geral. Esse conceito é tido como o mais simples e universal: é um conceito formalmente uno, que se aplica confusamente a tudo o que é, independentemente de categoria, natureza ou grau de perfeição. O autor reconhece que Scot mantém assim uma metafísica profundamente realista, fundada na inteligibilidade do ser.

No entanto, Mac Donagh observa uma ambiguidade na maneira como Scot concebe a abstração do ser. O conceito é apresentado como abstraído da experiência sensível, mas não se trata de uma abstração de gênero, nem tampouco de uma analogia. Scot não distingue de modo suficientemente claro os diferentes tipos de abstração — como a abstração transcendental e a abstração lógica —, o que compromete a precisão filosófica de sua abordagem.


3. A tese da univocidade do ser

A contribuição mais original — e ao mesmo tempo mais problemática — da metafísica scotista, segundo o autor, é a tese da univocidade do conceito de ser. Para Scot, o conceito de “ser” deve ser o mesmo (formalmente idêntico) quando aplicado tanto a Deus quanto à criatura, sob pena de se cair em equívoco e inviabilizar o raciocínio metafísico e teológico. A univocidade é justificada sobretudo por razões lógicas: um conceito que não fosse uno não poderia servir como termo médio válido num silogismo, e as provas da existência de Deus seriam impossíveis.

Mac Donagh considera esse raciocínio coerente dentro do sistema de Scot, mas critica seu fundamento e suas consequências. A crítica mais importante reside no fato de que Scot redefine o próprio sentido de “univocidade”. Enquanto a tradição, especialmente Tomás de Aquino, entendia a univocidade como uma identidade real e conceitual completa (como no caso de “animal” dito de homem e cavalo), Scot passa a considerar como unívoco qualquer conceito que possa ser usado logicamente sem ambiguidade. Trata-se de uma mudança de enfoque: o critério deixa de ser ontológico e passa a ser meramente lógico-formal. Para Mac Donagh, esse deslocamento empobrece a metafísica, pois separa o conceito de ser da diversidade real de suas instâncias, nivelando no plano lógico aquilo que é profundamente desigual no plano do ser.


4. A recusa da analogia

Em coerência com a tese da univocidade, Duns Scot recusa o uso da analogia na explicação do ser. Contudo, segundo Mac Donagh, essa recusa decorre de uma concepção estreita e incompleta da analogia. Scot reduz a analogia à analogia de atribuição extrínseca (como “saudável” dito da urina), e ignora ou não considera suficientemente a analogia de proporcionalidade intrínseca, segundo a qual o mesmo termo pode ser aplicado a realidades diversas de forma proporcional, com fundamento em uma semelhança de relação.

Esse ponto é crucial na crítica de Mac Donagh: ao não reconhecer a analogia de proporcionalidade, Scot é levado a forçar a univocidade onde, de fato, há uma real proporção. Isso se torna evidente no modo como ele trata as perfeições divinas: embora reconheça que Deus e as criaturas realizam essas perfeições de modos distintos (a sabedoria em Deus é infinita, nas criaturas é finita), insiste que o conceito é formalmente idêntico. Para o autor, essa insistência contradiz a própria realidade das coisas e ignora o princípio fundamental de que a analogia é o único meio adequado de falar de Deus sem negá-lo nem reduzi-lo à criatura.


5. As consequências filosóficas e teológicas

Mac Donagh reconhece que a motivação de Scot é nobre: deseja preservar a racionalidade da teologia natural e garantir que se possa provar a existência de Deus de forma lógica e válida. Contudo, ele observa que, ao reduzir a diferença entre Deus e criatura a uma diferença de grau e não de ordem, Scot acaba por comprometer a transcendência divina. A univocidade, se levada a sério até o fim, tende a nivelar Deus e criatura sob um mesmo conceito, o que fere a estrutura metafísica da criação e da participação no ser.

Além disso, Mac Donagh aponta que a própria lógica interna de Scot — ao reconhecer que as perfeições são realizadas de forma diferente em Deus e nas criaturas — já indica a presença implícita de uma analogia. Ou seja, mesmo negando o nome, Scot admite, de fato, a estrutura analógica do ser. Isso demonstra uma inconsistência: a recusa explícita da analogia convive com sua utilização tácita. Assim, a crítica principal do autor é que a metafísica scotista rejeita a analogia apenas em aparência, mantendo-a na substância, ainda que sob outros termos.

Conclusão

Mac Donagh oferece uma leitura rigorosa e crítica da metafísica do ser em Duns Scot. Embora reconheça sua coerência interna, seu realismo e sua nobre intenção de preservar a inteligibilidade racional de Deus, o autor ressalta com força que a tentativa de fundamentar a metafísica na univocidade do ser é, em última análise, filosoficamente insustentável e teologicamente arriscada. A recusa da analogia decorre de uma concepção empobrecida do próprio conceito de analogia e conduz a uma metafísica menos rica e menos fiel à estrutura real do ser.


Scot, portanto, é criticado por desviar-se do princípio central da tradição aristotélico-tomista: que o ser se diz de muitas maneiras, mas não em sentido unívoco — e que Deus, embora conhecido e nomeado a partir das criaturas, o é segundo uma analogia proporcional, não por identidade de conceito. A obra de Mac Donagh, assim, se inscreve no esforço neoescolástico de preservar a analogia como chave da metafísica cristã, contra o risco racionalista da univocidade.

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