1. Introdução: a retomada da metafísica
Lorenz B. Puntel insere-se no esforço contemporâneo de reabilitar a metafísica, mas de forma criativa, com um projeto que ele denomina de “nova metafísica”. Em vez de simplesmente repetir modelos do passado ou rejeitar a metafísica sob influência kantiana, positivista ou heideggeriana, Puntel busca um ponto de partida radical: a capacidade estrutural da mente de apreender a totalidade do ser.
Esse deslocamento inicial é decisivo. A filosofia moderna muitas vezes concentrou-se na relação sujeito/objeto, nas condições da experiência ou nas linguagens que estruturam o pensamento. Puntel recorda que tudo isso já pressupõe algo mais originário: que sempre nos movemos no horizonte do ser como um todo. É essa totalidade que se torna o objeto próprio da nova metafísica.
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2. A dimensão epistemológica: o dado originário da razão
A primeira tese é epistemológica: a apreensão da totalidade do ser é um fato originário da razão. Quando pensamos, não pensamos apenas entes particulares; pensamos sempre sob o pano de fundo do ser enquanto tal. Isso não é mera representação ou ideia reguladora, como em Kant, mas algo que está dado como estrutura constitutiva do espírito. Puntel chega a compará-lo, em chave crítica, ao “fato da razão” kantiano, mas aplicado à totalidade do ser.
Esse ponto é fundamental, pois impede que a filosofia seja reduzida a jogos de linguagem ou a construções mentais. O pensamento é coextensivo ao ser: não estamos condenados a permanecer na esfera subjetiva, mas já sempre nos encontramos diante da totalidade.
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3. Crítica às provas tradicionais da existência de Deus
A partir dessa base, Puntel revisita o tema clássico de Deus. Ele reconhece o valor das “vias” tomistas, mas as considera metodologicamente problemáticas. Todas elas são particularistas: partem de aspectos limitados (movimento, causalidade, contingência, graus de perfeição, ordenação do mundo) e, a partir daí, inferem uma causa suprema. O problema é que, nesse processo, o universo como totalidade não é tematizado.
Assim, a teologia natural tradicional, ao se fixar em pontos isolados, cai num “esquecimento da totalidade” análogo ao “esquecimento do ser” criticado por Heidegger. Isso gera equívocos, como a identificação direta do “primeiro motor” aristotélico com o Deus da fé, conduzindo a mal-entendidos célebres (como a crítica de Pascal ao “Deus dos filósofos”).
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4. A distinção entre Absoluto e Deus
Para evitar a confusão, Puntel propõe distinguir cuidadosamente entre o Absoluto (categoria filosófica) e o Deus cristão (categoria religiosa). O Absoluto é o resultado da explicitação da totalidade do ser em termos racionais; Deus, em sentido cristão, é a forma histórica e religiosa como o Absoluto se revelou e se deu a conhecer na tradição bíblica.
Essa distinção não estabelece um abismo intransponível, mas sim um processo de determinação progressiva: a filosofia atinge o Absoluto como necessário e incondicionado; a história da religião mostra que esse Absoluto se manifesta como Deus pessoal, criador e salvador.
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5. O encadeamento lógico da demonstração
O núcleo da proposta de Puntel pode ser visto como um esquema de demonstração que se desenvolve em quatro grandes passos:
1. Primeiro passo – A mente humana é estruturalmente capaz de apreender a totalidade do ser. Essa totalidade não é construída, mas dada como horizonte originário.
2. Segundo passo – A totalidade do ser, ao ser tematizada, mostra-se diferenciada: há uma dimensão contingente, que pode ou não ser, e uma dimensão necessária, incondicionada.
3. Terceiro passo – A contingência só é inteligível se fundada numa dimensão necessária. Assim, a razão reconhece o Absoluto como condição da totalidade. Esse Absoluto é o fundamento último, o ser absolutamente necessário.
4. Quarto passo – Esse Absoluto, ao ser pensado em toda a sua densidade, manifesta-se como criador pessoal. Não se trata de uma abstração neutra, mas de um princípio ativo, fundamento de sentido e liberdade, que abre caminho para a identificação com o Deus cristão.
Esse percurso não é uma prova no estilo clássico, mas uma explicitação holística: não parte de fenômenos isolados, mas da totalidade, e mostra como o Absoluto emerge como determinação necessária.
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6. Superação da dicotomia filosofia/teologia
Uma das consequências mais importantes é a superação da oposição rígida entre filosofia e teologia. Tradicionalmente, a filosofia foi vista como “ancilla theologiae” ou, em reação, como esfera autônoma fechada. Para Puntel, essa dicotomia é insustentável: ambas são dimensões de um mesmo processo de explicitação da totalidade do ser.
A filosofia chega ao Absoluto; a teologia, iluminada pela história da revelação, reconhece nesse Absoluto o Deus vivo. Em vez de concorrência ou separação, há complementaridade.
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7. A dimensão metafísica: do Absoluto ao Deus cristão
A novidade da proposta de Puntel está em recolocar a metafísica como ponte. O Absoluto não é apenas uma categoria abstrata, mas se deixa compreender plenamente apenas em articulação com a história da liberdade — ou seja, com a história da religião e, em particular, com a tradição judaico-cristã.
Assim, a dimensão metafísica se abre para a dimensão histórica: a totalidade do ser só é plenamente determinada quando se reconhece que o Absoluto se revelou como Deus criador e redentor. Aqui a metafísica e a teologia convergem, sem que uma se dissolva na outra.
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8. Conclusão: a atualidade de Puntel
Num tempo em que a metafísica foi muitas vezes rejeitada como ultrapassada, Puntel oferece um modelo sistemático, rigoroso e inovador. Ele mostra que a razão humana, ao explicitar a totalidade do ser, é levada logicamente ao Absoluto e, por consequência, abre caminho para Deus.
Não se trata do “Deus dos filósofos” em oposição ao “Deus da fé”, mas de um único Absoluto, pensado e vivido em diferentes dimensões. A filosofia, assim, não fecha as portas à transcendência, mas encontra nela o seu horizonte último.
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Em resumo: a proposta de Puntel pode ser lida como um novo capítulo da metafísica. Ela parte da estrutura da razão, explicita a totalidade do ser, alcança o Absoluto e o reconhece como Deus. Trata-se de um itinerário filosófico coerente, que justifica epistemologicamente a possibilidade de acesso a Deus e recoloca a filosofia em diálogo fecundo com a fé cristã.
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