Pular para o conteúdo principal

O jovem Hegel e Jesus

Hegel escreveu uma Vida de Jesus, que foi publicada só depois de sua morte. A visão aí apresentada sobre Jesus é típica do Iluminismo. 

Hegel, nos anos de estudo em Tubinga, criticava o que ele considerava ser o “formalismo” kantiano. Via na filosofia prática de Kant uma importância excessiva dada à lei em detrimento das motivações sensíveis e estéticas. Hegel queria instaurar uma “religião popular”, em que houvesse convergência entre experiência subjetiva e comunidade ética. Ele via o cristianismo de sua época como estéril, como uma religião meramente “positiva”, isto é, referendada pelas leis e tradições, objetivada em normas e dogmas, mas incapaz de calar dentro dos indivíduos e os mover para a liberdade. A liberdade, para Hegel, era algo entre a espontaneidade individual e a vida ética em comum. Livre é um povo cujos membros praticam espontaneamente - isto é, motivados por si mesmos, razão e sensibilidade unidas - o que convém a cada um e a todos em conjunto.

Depois de Tubinga, Hegel aproximou-se mais da forma kantiana de pensar a liberdade. Ele viu que Kant propugnava justamente que o indivíduo pudesse dar a si mesmo a lei moral, sem se submeter a algo de externo. Tal lei era a lei da razão prática, lei da liberdade, sintetizada no imperativo categórico — “age de tal forma que a máxima de tua ação possa valer como legislação universal”. O encontro entre os vários indivíduos que dão a si mesmos a lei da razão só poderia construir aquela convergência endereçada ao “Reino de Deus” sobre a terra, pois que, sendo racional, a lei de cada indivíduo é a mesma lei em todos os seres racionais. 

Jesus, segundo Hegel, queria libertar os judeus do peso da religião positiva. O judaísmo se tinha tornado um culto à lei positiva, um fardo insuportável. Jesus pregava, ao invés, a religião da lei moral racional, interior, que cada um deve descobrir em si e dar a si mesmo, a lei da liberdade - na verdade, um kantismo “avant la lettre”. Sócrates, na Grécia, tinha propósitos similares. 

Entretanto, para sacudir o status quo e libertar os judeus do apego à lei positiva, Jesus teve de reclamar autoridade para si. Esse teria sido o início da caída do cristianismo nas malhas da religião positiva que Jesus queria combater. Os discípulos apegaram-se à autoridade de Jesus, em vez de reconhecer a liberdade que ele pregava. Sócrates, à diferença de Jesus, apelava somente à razão, e seus discípulos não o cultuaram, mas aprenderam com ele a ouvir só a razão que lhes falava no interior.

Essa interpretação dada ao papel de Jesus na história da humanidade ainda tem influenciado o pensamento de muitos. Ela apresenta um Jesus contrário à religião instituída. As pesquisas históricas mais recentes, porém, convergem em dizer que Jesus era um “Jesus halákico”, isto é, plenamente inserido na religião de seu tempo como um mestre de interpretação da lei mosaica.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Física e metafísica. Päs e Tomás de Aquino

Heinrich Päs, físico teórico alemão, propõe uma reinterpretação radical da realidade à luz da física quântica contemporânea. Seu ponto de partida é a constatação de que, quando a mecânica quântica é aplicada não apenas a sistemas particulares, mas ao universo como um todo, ela conduz a uma concepção de realidade que coincide com uma das ideias filosóficas mais antigas da humanidade: tudo é um. Essa tese, tradicionalmente chamada de monismo, é retomada por Päs não como um misticismo ou uma crença espiritual, mas como uma hipótese cientificamente sustentada pela física de ponta, sobretudo pela cosmologia quântica e pela teoria do entrelaçamento. A realidade, segundo essa concepção, não é composta por partes isoladas que interagem entre si, mas por uma totalidade indivisa. A multiplicidade que percebemos no mundo – os objetos, os corpos, os eventos, o tempo e o espaço – é uma aparência derivada. O fundamento último de tudo o que existe não está nos átomos, nas partículas ou nas forças que...

Escritura e Tradição

A Revelação divina não coincide com a Escritura nem pode coincidir. A Revelação é uma atividade (viva) da parte de Deus, que é sua fonte, e da parte da Igreja, que é seu receptáculo. Sem a ação de Deus e sem a fé da Igreja não há Revelação. Um simples texto não pode substituir essa atividade ou essa vida.  No entanto, a Escritura é a cristalização canônica dessa atividade em sua fase fundacional; é o seu testemunho autorizado. Ela é o fruto do processo da Revelação em sua fase constitutiva, que podemos chamar Tradição (já que Deus age e o povo de Deus escuta e transmite, gerando a Tradição), e é o critério de desenvolvimento da desse processo que prossegue a sua vida, já que a Tradição, que começa no tempo fundacional ou constitutivo com os Patriarcas e Profetas para o AT e com Jesus e os Apóstolos para o NT, deve continuar viva e mostrar-se como o horizonte no qual a Igreja transmite e recebe a fé. Sem a ação do Espírito, que atualiza a autocomunicação de Deus em todo o tempo e lu...

O homem, o pecado e a redenção

  1. O homem: criado à imagem de Deus 1.1. A Dignidade da Pessoa Humana O ser humano ocupa um lugar absolutamente singular na criação. Ele foi criado “à imagem de Deus” (Gn 1,27), o que indica não apenas uma semelhança exterior, mas uma profundidade de ser: o homem é capaz de conhecer e amar livremente. Nenhuma outra criatura visível possui essa dignidade. Ele é dotado de razão e liberdade, sendo chamado a participar da vida de Deus. Esse chamado constitui a raiz de sua dignidade inalienável. “Foi por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de apreciar o vosso bem eterno” (Catecismo da Igreja Católica 356) [1] . Contudo, com o desenvolvimento das ciências da natureza (a partir do século XVII) e das ciências do homem (a partir do século XVIII), muitos estudiosos passaram a considerar impossível a formulação de uma ideia unitária do homem. O saber fragmentou-se em disciplinas como a biologia, a sociologia, a antropologia cultural, a psicologia etc., tornando dif...