1. O homem: criado à imagem de Deus
1.1. A Dignidade da Pessoa HumanaO ser humano ocupa um lugar absolutamente singular na criação. Ele foi criado “à imagem de Deus” (Gn 1,27), o que indica não apenas uma semelhança exterior, mas uma profundidade de ser: o homem é capaz de conhecer e amar livremente. Nenhuma outra criatura visível possui essa dignidade. Ele é dotado de razão e liberdade, sendo chamado a participar da vida de Deus. Esse chamado constitui a raiz de sua dignidade inalienável.
“Foi por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de apreciar o vosso bem eterno” (Catecismo da Igreja Católica 356)[1].
Contudo, com o desenvolvimento das ciências da natureza (a partir do século XVII) e das ciências do homem (a partir do século XVIII), muitos estudiosos passaram a considerar impossível a formulação de uma ideia unitária do homem. O saber fragmentou-se em disciplinas como a biologia, a sociologia, a antropologia cultural, a psicologia etc., tornando difícil encontrar uma instância que unifique criticamente o saber sobre o homem.
Por vezes, uma dessas ciências pretende ser a única intérprete autorizada da natureza humana, reduzindo o homem à sua dimensão biológica, social ou cultural. Mas essa redução empobrece profundamente a compreensão do ser humano. Pois, embora o homem possua dimensões biológica, psicológica, sociológica e cultural, é sua dimensão espiritual que o constitui propriamente como homem.
É no espírito que o homem se reconhece como ser de razão e liberdade. Esse espírito não é objeto de observação empírica nem de análise experimental, mas pode ser reconhecido pela reflexão. Quando o homem se interroga sobre si mesmo, ele se experimenta como razão interrogante e liberdade em ato. Negar a espiritualidade do homem é contradizer a própria experiência do sujeito que pensa e ama.
O homem, na verdade, não é espírito puro, mas é coroado pela dimensão espiritual. E é vivendo a vida do espírito que o homem expressa sua humanidade. Pela vida do espírito, o homem é capaz de ultrapassar, de alguma maneira, todas as determinações biológicas, psicológicas, sociológicas e culturais. Pelo espírito, o homem está aberto para a infinitude do Ser e do Bem, de modo que os contornos limitados da natureza e da sociedade não podem trazer-lhe satisfação plena. Há um “excesso ontológico” no homem que o leva a se ultrapassar constantemente. Só o Absoluto real pode trazer-lhe satisfação. Em última análise, o homem é um ser para a Transcendência.
1.2. Pessoa e comunhão
Criado como “alguém” e não como “algo”, o homem é pessoa: um ser capaz de refletir sobre si, de se possuir e de se doar. A abertura para o outro e para o infinito é traço característico da vida espiritual. Por isso, a pessoa humana é feita para a comunhão. A Aliança com Deus é o ápice dessa comunhão, que nenhuma outra criatura pode realizar em seu lugar.
1.3. Cristo, verdadeira imagem
É em Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, que se ilumina definitivamente a imagem de Deus no homem. Ele é o “último Adão”, imagem perfeita do Pai, que revela não só quem é Deus, mas também quem é o homem em sua plenitude. Em Cristo, a humanidade reencontra sua vocação mais alta: a filiação divina.
2.1. Corpo e alma: uma só natureza
A unidade do homem como ser composto de corpo e alma não pode ser compreendida como mera justaposição. O homem não é uma alma aprisionada em um corpo, nem um corpo animado por acidente. Ele é corpore et anima unus: corpo e alma formam uma só substância, uma só realidade pessoal. A alma humana é espiritual e é a “forma” do corpo, conferindo-lhe sua identidade própria como corpo humano.
É nesse sentido que se afirma que o corpo participa da dignidade da imagem de Deus. O corpo humano, por ser animado por uma alma espiritual, é chamado a ser templo do Espírito e a participar da redenção operada por Cristo.
É também aqui que a reflexão filosófica pode oferecer uma contribuição decisiva. Henrique Cláudio de Lima Vaz, por exemplo, concebe o homem como expressividade: um ser que não se reduz à sua exterioridade biológica ou à sua interioridade meramente psíquica, mas que, por meio delas, expressa sua intencionalidade mais profunda — a abertura ao Ser. Há no homem um movimento que o transcende e que não encontra equivalência plena em nenhuma de suas dimensões naturais ou finitas. Nem o corpo nem o psiquismo podem explicar essa abertura. Só o espírito é proporcionado à infinitude do Ser.
Lima Vaz escreve:
“(…) o somático e o psíquico, que se mostram como estruturas necessariamente pressupostas a seu exercício, são suprassumidos na intencionalidade própria do espírito, ou seja, na abertura do espírito à universalidade do ser”.
O homem é ser na natureza, com os outros e no mundo — mas, fundamentalmente, é ser para a transcendência.
2.2. A alma espiritual
A alma espiritual, criada imediatamente por Deus, é imortal. Ela sobrevive à morte do corpo e se unirá novamente a ele na ressurreição final. A alma espiritual não pode ser explicada pelas ciências empíricas. Ela é o centro da liberdade e da racionalidade humanas, o “lugar” onde se realiza a abertura do homem à infinitude do Ser. No entanto, o ser humano não é só a alma espiritual, mas unidade de corpo e alma.
2.3. O "coração" como centro do ser humano aberto ao Ser
A tradição bíblica e patrística fala do coração como o centro do ser humano, o lugar da decisão moral, da fé, do encontro com Deus. A esse centro interior, é possível unir a visão filosófica da interioridade espiritual como lugar onde o Ser habita. Santo Agostinho, por exemplo, reconhece que só encontrou o que buscava fora quando se voltou para dentro, onde Deus já habitava desde o início.
O espírito humano é, portanto, morada do Ser — mas uma morada que pode tornar-se obscura, esquecida, dispersa. A cultura técnica, ao dispersar o espírito no múltiplo e no manipulável, impede a ascensão interior. Coloca o homem diante de um mundo horizontalmente indefinido, mas esquece que ele só encontra plenitude na verticalidade da transcendência.
A pergunta que se impõe é: poderá o homem satisfazer-se com o mundo dos objetos técnicos? Ou será que, sendo ele mesmo abertura ao Ser, será sempre levado a buscar o Absoluto?
Segundo Lima Vaz, o espírito humano carrega uma presença formal do Ser. Essa presença não é ainda a posse do Ser, mas é o que o lança na busca da Transcendência real. Essa busca é exigente, pois requer a subida do espírito. Por isso, a tensão fundamental da existência humana se dá entre dois polos: a dispersão no domínio técnico e a concentração no Ser. Em última instância, a pergunta decisiva é: o homem será fiel à sua vocação espiritual, ou se perderá no mal infinito da dominação técnica?
3. Homem e mulher os criou
3.1. Igualdade e diferença queridas por Deus
Homem e mulher são igualmente criados à imagem de Deus. Isso significa que ambos compartilham da mesma dignidade e valor ontológico. Deus quis ambos — homem e mulher — como pessoas humanas em sua complementaridade. O “ser homem” e o “ser mulher” são realidades boas, queridas por Deus, que revelam, cada um à sua maneira, a sabedoria do Criador.
A sexualidade humana não é algo secundário, mas uma dimensão constitutiva do ser humano enquanto pessoa. Embora Deus seja puro espírito, as perfeições do homem e da mulher refletem aspectos da infinita perfeição divina. O amor paterno, o cuidado materno, a fidelidade esponsal — todos esses aspectos evocam analogicamente o cuidado, a fidelidade e a confiabilidade divina.
3.2. Um para o outro — uma unidade a dois
A criação do homem e da mulher manifesta uma verdade antropológica essencial: o ser humano é feito para a comunhão. “Não é bom que o homem esteja só”, diz o Senhor (Gn 2,18). O outro não é um limite, mas uma possibilidade de plenitude. O homem descobre a mulher como um outro “eu”, com quem pode estabelecer uma relação de mútuo dom e reciprocidade.
A unidade do casal humano reflete a união das Pessoas divinas. No matrimônio, homem e mulher tornam-se uma só carne, cooperando com Deus na geração de novas vidas. Trata-se de uma participação na própria obra criadora, que exige responsabilidade, fidelidade e abertura à vida. A comunhão dos sexos, portanto, não é simples complementaridade biológica, mas vocação à doação mútua no amor.
3.3. Responsabilidade sobre o mundo
Criados à imagem de Deus, homem e mulher são chamados a exercer o domínio sobre a criação. Este domínio não é de dominação arbitrária, mas de custódia e cuidado. A vocação originária do homem é ser administrador e não senhor absoluto da terra. A imagem de Deus em ambos inclui a responsabilidade pela obra criada, em harmonia com a vontade do Criador que “ama tudo o que existe” (Sb 11,24).
4. O homem no Paraíso
4.1. Narrativa simbólica, mas real
A narrativa do Gênesis sobre o paraíso deve ser compreendida à luz da linguagem simbólica própria do texto em questão. Não se trata, necessariamente, de uma descrição histórica ou geográfica de um estado plenamente realizado no passado, mas da expressão de uma possibilidade originária: o paraíso é o nome teológico de uma condição espiritual querida por Deus desde o princípio, oferecida ao homem como vocação e dom.
Desde o início, Deus quis que o ser humano vivesse em comunhão com Ele, em paz interior, harmonia consigo mesmo, com os outros e com o mundo criado. Essa é a realidade profunda designada pela imagem do jardim: um estado de sabedoria, inocência e vida plena, cuja plenitude o homem teria alcançado sem atropelos se permanecesse fiel ao Bem.
Contudo, desde o início o ser humano pecou. Desde o primeiro pecado — desde o primeiro fechamento da liberdade humana ao dom de Deus —, o homem distanciou-se da possibilidade do Paraíso. O Paraíso, que era uma vocação real, foi comprometido pela recusa da amizade divina. A escolha desordenada do próprio ego, o amor desviado para bens passageiros e o desprezo do Bem marcaram profundamente a condição humana desde o início da existência da liberdade. O homem perdeu a ligação com a Árvore da Vida, símbolo da união constante com o Criador.
“Pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores” (Rm 5,19).
O pecado, nesse sentido, é fechamento, recusa do dom, ruptura da ordem do amor. E com o pecado, a condição humana — que deveria ter sido jardim — tornou-se lugar de conflito, medo e fragmentação. A morte, que seria travessia, passou a ser sentida como ruptura. O mundo, que deveria ser casa de comunhão, tornou-se lugar de luta. Mas essa perda não é absoluta nem definitiva.
4.2. Cristo reinaugura o acesso ao Paraíso
A redenção realizada por Cristo reinaugura a possibilidade do paraíso para o homem. Pelo mistério da cruz e da ressurreição, o dom da comunhão com Deus é novamente oferecido à humanidade. O véu que separava o homem do Santo dos santos foi rasgado; a vida nova foi aberta. Desde então, o paraíso não é apenas promessa futura: é realidade espiritual possível já neste mundo, por meio da graça.
A tradição mística é testemunha disso: homens e mulheres santos e espirituais narram, desde cedo, que é possível experimentar já nesta vida uma paz profunda, uma sabedoria amorosa, uma imortalidade antecipada, no sentido de que a alma que ama não teme a morte, mas a vê como passagem para o Amado. Como dizia São João da Cruz:
“A alma enamorada de Deus não teme a morte, pois sabe que ela a conduz ao encontro do Amado”.
4.3. O Paraíso é espiritual, mas se expressa no mundo
Esse Paraíso que Cristo nos reabre é antes de tudo interior, espiritual: é a paz com Deus, a libertação do pecado, a restauração da harmonia da consciência. Mas essa paz não permanece confinada no íntimo da alma. Quando o homem se reconcilia com Deus, ele se abre ao próximo e ao mundo. A graça age na história. E uma história coletiva redimida é, por sua vez, facilitadora da comunhão pessoal com Deus. Redenção da alma e da história complementam-se e se implicam.
O Paraíso, portanto, reflete-se também na construção de relações mais fraternas, de estruturas mais justas, de comunidades mais pacíficas. A comunhão com Deus gera uma nova comunhão entre os homens. Sempre que há reconciliação verdadeira, perdão real, busca sincera do bem comum e da justiça, sinais do paraíso aparecem no mundo. A fé cristã reconhece que esses sinais são frágeis e transitórios no tempo, mas são reais e eficazes, e apontam para a plenitude prometida.
4.4. A plenitude futura
Contudo, a plena realização do paraíso está além desta vida. A condição atual da existência permanece marcada pela fragilidade, pela dor e pela morte. Por isso, o cristão vive numa tensão: já experimenta os primeiros frutos do Reino, mas ainda espera a colheita final. O paraíso é uma realidade reaberta pela graça, efetiva na caridade, crescida no tempo, consumada na eternidade.
“Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43), disse Jesus ao bom ladrão. Essa promessa vale para todos os que, por sua graça, renunciam ao fechamento do pecado e se abrem ao dom de Deus.
A missão do cristão, portanto, é cooperar com a graça da redenção para que o paraíso floresça, já aqui e agora, na alma e no mundo. Sempre que escolhemos o Bem, que perdoamos, que construímos pontes, que cuidamos da criação, tornamos visível o invisível Reino que está entre nós.
5. A queda
5.1. Pecado original
A doutrina cristã da criação não oculta o fato de que o homem, tal como se encontra no mundo, vive ferido. À luz da fé, essa ferida tem um nome: pecado. A Revelação nos ensina que, desde o início, houve um fechamento do homem ao dom de Deus, uma recusa da comunhão originária. O primeiro pecado, ato livre e radical, é chamado pela tradição de pecado original originante. E suas consequências, que marcam desfavoravelmente a condição de todos os seres humanos subsequentes, são chamadas de pecado original originado.
O pecado não é um simples erro, nem apenas uma falta de maturidade moral. Ele é, na sua raiz, rejeição do Bem, recusa da Verdade, fechamento ao dom do Ser. É neste ponto que se revela sua gravidade: o homem optou por si mesmo contra Deus, preferiu a criatura ao Criador, interrompeu a ordem do amor.
“O homem preferiu-se a si próprio a Deus, e por isso desprezou Deus” (CIC 398).
5.2. O Pecado como recusa da relação
O pecado não pode ser compreendido fora da relação. O ser humano só é plenamente ele mesmo quando se reconhece como dependente de Deus e aberto ao outro. Mas o pecado introduz a recusa dessa relação fundante. O homem, tentado pela ilusão da autonomia absoluta, fecha-se à transcendência e concentra-se sobre si mesmo. Surge, então, a tríplice desordem: com Deus, consigo mesmo, e com os outros.
Esse fechamento não é um mito, mas um acontecimento que perpassa a história e se atualiza em cada consciência. O Catecismo afirma que a narrativa da queda (Gn 3), embora simbólica em sua linguagem, refere-se a um fato real e primordial, um ato livre dos primeiros pais (CIC 390). A universalidade do pecado, testemunhada pela Escritura e pela experiência humana, só se compreende a partir desse drama originário.
5.3. As consequências da queda
Os primeiros pais, dos quais podemos falar a partir de quando apareceu o espírito no mundo (que é o ser humano propriamente dito)[2], pecaram e, com a sua primeira e pessoal decisão contra o Bem (pecado original originante), introduziram no mundo não só uma história subsequente marcada por semelhantes decisões, mas também uma condição desfavorável para o exercício da liberdade dos seus descendentes (pecado original originado).
O pecado dos primeiros pais ou primeiros seres humanos não precisa ter sido necessariamente um pecado de conteúdo fenomenicamente catastrófico, mas intencionalmente foi uma recusa grave do Bem tal como se apresentava à consciência em favor do ego (soberba), o que não deixou de marcar negativamente o mundo e o contexto das relações. Assim, os primeiros pais legaram um mundo marcado pela negatividade do pecado para seus descendentes, cujo espírito (inteligência e liberdade), tendo de exercitar-se nesse contexto negativo, veem-se limitados e obstaculizados na sua propensão para o Bem.
A partir do primeiro pecado pessoal instaurou-se uma condição desfavorável para o exercício da vida integral de todo homem que vem a este mundo. Com o acúmulo de novos pecados pessoais, essa condição piora e forma uma verdadeira trama de negatividade, da qual se torna impossível libertar-se sem a graça de Deus. Como o homem vive sempre a partir de uma condição no mundo e a condição mundana não lhe é algo meramente exterior, a ferida da condição mundana e a ferida do coração humano são coisas que se relacionam íntima e dialeticamente.
5.4. Uma antropologia da ferida
A tradição cristã, especialmente por meio de Santo Agostinho, formulou uma profunda antropologia da ferida. A natureza humana, criada boa e para um projeto bom, não foi destruída, mas ficou ferida em sua própria estrutura com a entrata do pecado. O pecado original originado não é culpa pessoal dos descendentes de Adão (figura simbólica que representa os primeiros pais), mas uma condição herdada, uma privação.
Essa condição explica por que o homem, mesmo desejando o Bem, frequentemente não consegue realizá-lo plenamente. Há em sua interioridade uma divisão, uma tensão, uma luta. Essa luta é o sinal de que a liberdade não está perdida, mas também de que ela precisa ser redimida. O Catecismo reconhece com lucidez:
“Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da ação social e dos costumes” (CIC 407).
5.5. Críticas filosóficas e atualidade da doutrina
A doutrina do pecado original enfrentou e continua enfrentando objeções. O pelagianismo, nos primeiros séculos, negava a necessidade da graça, sustentando que o homem poderia, por si mesmo, atingir a salvação. O protestantismo reformado, por outro lado, acentuou tanto a corrupção da natureza humana que acabou negando a liberdade. A posição católica, definida em Orange (529) e Trento (século XVI), afirma que a natureza humana é ferida, não destruída, e que a graça é absolutamente necessária, mas não anula a liberdade.
Mais recentemente, correntes como o estruturalismo e o pós-estruturalismo tendem a dissolver o sujeito pessoal na lógica das estruturas ou discursos. Mas uma antropologia cristã reafirma que o homem não é puro produto das estruturas: ele é um ser ferido, mas responsável, dotado de espírito, chamado à liberdade e à comunhão com o Ser.
Henrique Cláudio de Lima Vaz, retomando a tradição agostiniana e tomista, afirmou que a ferida do pecado se revela na expressividade desfigurada do homem. O espírito, feito para o Ser, fecha-se sobre si, obscurece sua intencionalidade, e se dispersa no mundo técnico, esquecendo-se da transcendência. A redenção, então, será a reabertura da expressividade ao Ser.
5.6. O pecado do mundo
O pecado original tem uma dimensão estrutural. Ele não é apenas uma ferida individual, mas uma desordem que atravessa a história humana. O Catecismo fala de “condição pecadora do mundo” (CIC 408), que se manifesta em estruturas injustas, em culturas de morte, em sistemas que obscurecem a verdade e promovem o egoísmo coletivo. É o que o Evangelho de João chama de “pecado do mundo” (Jo 1,29).
Por isso, a luta contra o pecado não é apenas espiritual, mas também cultural, social e histórica. Trata-se de restaurar o homem por dentro, mas também de construir relações, instituições e culturas que estejam em sintonia com a verdade do ser.
6. A Redenção
6.1. A promessa do amor que não abandona
Diante da queda do homem e da ferida introduzida na história pela recusa do dom de Deus, a resposta divina não é condenação, mas misericórdia criadora. O Deus que é Amor não abandona a criatura que se afasta: ele vai em busca dela. Desde o início, mesmo após o pecado, Deus anuncia a salvação, reabre o caminho e promete a vitória final do Bem.
Essa promessa é formulada já nas primeiras páginas da Escritura, no chamado Protoevangelho (Gn 3,15), quando Deus afirma que a descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente. Trata-se do primeiro anúncio do Redentor, que virá ao mundo para vencer o mal e restaurar o homem. Esse Redentor é Cristo Jesus, o Verbo Encarnado, novo Adão, que, pela sua obediência até a morte, reabre ao homem a possibilidade do paraíso.
“Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20).
6.2. A redenção como nova criação
A redenção operada por Cristo não é simples reparação de danos. Ela é recriação, reconfiguração profunda da condição humana. Cristo não apenas devolve ao homem o que ele havia perdido: Ele o eleva a uma condição ainda mais alta. Como diz São Leão Magno, “a graça de Cristo nos deu bens superiores aos que a inveja do demônio nos havia tirado” (CIC 412).
A salvação cristã não é retorno ao passado, mas abertura para um futuro glorioso. Cristo reconfigura o homem segundo a imagem do Filho amado: não apenas criatura, mas filho no Filho. Ele nos redime para que sejamos participantes da natureza divina (cf. 2Pd 1,4), chamados a viver na liberdade e na luz.
6.3. O início do Reino
Com Cristo, o Reino de Deus irrompe na história. A redenção tem início visível na encarnação e se consuma na Páscoa, mas suas consequências se estendem até a transformação final do cosmos. O Reino começa em nós pela graça, e entre nós pela comunhão. Por isso, a redenção reabre o paraíso como realidade espiritual que pode ser vivida já nesta vida, como vimos anteriormente.
Essa redenção se dá em vários níveis:
No íntimo da consciência, restaurando a paz com Deus;
Na liberdade ferida, reorientando-a para o Bem;
Na história, inspirando a construção de relações mais justas e fraternas;
No mundo, animando a cultura com o sopro do Evangelho.
A redenção tem, assim, uma dimensão espiritual, mas também pessoal, comunitária e cósmica.
6.4. Graça, liberdade e combate
A redenção não se impõe sem o consentimento da liberdade. Deus oferece sua graça, mas espera a resposta do homem. Trata-se de um drama espiritual, vivido no tempo, no qual cada pessoa é chamada a colaborar com a salvação. O Catecismo afirma com clareza que:
“O homem vê-se na necessidade de lutar sem descanso para aderir ao bem. Só através de grandes esforços é que, com a graça de Deus, consegue realizar a sua unidade interior” (CIC 409).
A vida cristã é, portanto, combate espiritual. O mal não desaparece magicamente. Ele deve ser vencido, dia após dia, com a força da fé, da esperança e da caridade. Trata-se de um combate contra a dispersão interior, contra a tentação do egoísmo, contra a estrutura do pecado no mundo. É também o combate da inteligência, que deve resistir à mentira, ao erro e à manipulação ideológica.
6.5. O Espírito Santo e a renovação do coração
A redenção é obra trinitária. O Pai envia o Filho; o Filho oferece sua vida; o Espírito Santo aplica essa obra aos corações. É o Espírito que desperta a fé, concede a conversão, perdoa os pecados, comunica a vida divina. Ele é o sopro do novo paraíso, que começa a florescer na alma redimida.
A tradição espiritual ensina que o Espírito é como brisa leve, que sopra no íntimo do coração e o transforma em templo. Ele conduz o cristão ao interior da verdade, dá testemunho do Filho e gera nele o desejo da comunhão eterna.
6.6. A esperança do paraíso consumado
A redenção não se encerra na história. O mundo redimido ainda caminha entre luzes e sombras. Por isso, o cristão vive da esperança: espera a consumação do Reino, a transfiguração do corpo, a ressurreição final e a vida eterna. O paraíso pleno ainda não é visível, mas já é certo.
Essa esperança não aliena, mas compromete. Quem espera o Reino, colabora com ele. Quem crê na eternidade, ama o tempo. Quem deseja o paraíso, constrói sinais dele no mundo. Assim, a redenção se manifesta como um processo: começou na cruz, prolonga-se nos sacramentos, cresce na caridade, culmina na visão beatífica.
Conclusão
A antropologia cristã é uma visão profunda, integrada e esperançosa do homem:
Criado à imagem de Deus, o homem é espírito encarnado, chamado à comunhão com o Ser.
Ferido pelo pecado, vive numa condição de ruptura, mas com sede da plenitude.
Em Cristo, é redimido, reaberto ao paraíso, reorientado à verdade do amor.
Essa visão recusa tanto o otimismo ingênuo quanto o pessimismo radical. Ela reconhece o drama da liberdade, a realidade da queda, mas proclama a vitória da graça. O homem não é absoluto, mas é aberto ao Absoluto. E sua dignidade mais profunda está em ser capaz de Deus (capax Dei), portador de uma vocação à eternidade que nenhuma estrutura ou técnica poderá apagar.
A vida cristã, portanto, é resposta a um dom. É caminho de retorno e de ascensão. É combate e transfiguração. E seu fim não é outro senão aquele que o próprio Deus nos revelou: Deus ser tudo em todos (1Cor 15,28), vida no paraíso eterno, na comunhão dos santos, na plenitude do amor.
___________
[1] De agora em diante CIC.
[2] A notícia do aparecimento dos primeiros seres humanos propriamente ditos, dotados de espírito e capazes de se decidir diante do Bem, perde-se nas névoas da pré-história, e não podemos conhecê-lo apenas considerando os dados arqueológicos, já que o espírito não pode ser colhido com a pá do arqueólogo. Devemos dizer que o ser humano surgiu quando o espírito (a capacidade de vislumbrar o Bem e de se posicionar livremente diante dele) apareceu no mundo. Só podemos falar dos primeiros homens ou dos primeiros pais quando houve a travessia do rubicão da hominização: a travessia da pura matéria para o reino do espírito.
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