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Demonstração da existência de Deus

 A 1ª via de S. Tomás, na Summa theologiæ, para demonstrar a existência de Deus é a mais clara — manifestior via, segundo o santo doutor. 

No seu último escrito teológico, o Compendium theologiæ, Tomás se vale unicamente dessa via, ou seja, a via do movimento. 

Mas a via é válida ainda hoje? — perguntará alguém. Ela não está ligada à física que se professava no século XIII, isto é, a física aristotélica?

Bem. É de notar que S. Tomás dá à sua argumentação uma valência metafísica. Isso quer dizer que, qualquer que seja a física que se professe, a argumentação continua valendo. 

Mas o que é a valência metafísica de que é dotada a argumentação? 

A valência metafísica diz que a argumentação está apoiada nos princípios mais básicos da inteligência humana, como o princípio de não-contradição ou o de identidade. 

Não se nega o ponto de partida da argumentação, que é dado pela experiência mundana — o movimento das coisas. Mas se assume o dado da experiência sob a iluminação dos princípios primeiros da inteligência. Se alguém nega esses princípios, não poderá sequer pensar uma ideia ou dizer uma palavra com sentido. 

O movimento é assumido sob os princípios primeiros da inteligência, que são os princípios do ser. Ora, se algo se move, a explicação última do movimento não pode ser encontrada no ente que se move. Se assim fosse, feriríamos o princípio de não-contradição, pois o ente em questão seria movente e movido ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Se encontrarmos a causa do movimento do referido ente num outro ente — que podemos chamar de ente2 —, é preciso ver se esse ente é também movido ou se recebe ou não o movimento de outro — o ente3. Se todos os entes que movem são também movidos, não teremos encontrado a origem última do movimento, ainda que a série dos moventes-movidos seja infinita. 

É a impossibilidade de encontrar no próprio ente que se move a causa derradeira do próprio movimento que nos leva a ter de admitir que a origem última de todo movimento só pode estar numa realidade que não é movida por nada — absolutamente — e só comunica movimento. Tal é o Motor Imóvel. 

O leitor vê que há um salto para fora da série de entes moventes-movidos. Não é, porém, um salto injustificado. Se ficássemos na série dos entes movidos (ainda que sejam moventes), não explicaríamos o movimento em sua causa última. Todo ente que é movido, o é por um outro, sob pena de violamos o princípio de não-contradição, afirmando que há entes que se movem a si mesmos sob a mesma relação. A resposta está, pois, no salto para o Motor Imóvel. Ele não é movido. O movimento da série encontra nele sua explicação, pois que necessariamente ele deve ser Motor, ainda que não movido. 

O salto é como uma visão justificada que se impõe à mente do metafísico. É uma fuga da série de entes mutáveis. Uma fuga necessária para que haja inteligibilidade na série dos moventes-movidos.

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Obs.: o automóvel ou o ser vivo, que parecem mover-se a si mesmos, não o fazem em termos absolutos, já que uma de suas partes é que move outras; ao fim e ao cabo, recebem de outro o material para a produção da própria energia — o combustível ou a alimentação.

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