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O Ocidente e o divino


O Ocidente racionalista, empirista e cientificista tem enormes dificuldades, às vezes intransponíveis, de acreditar que Jesus de Nazaré possa ser Deus. Mas esse Ocidente é só uma perspectiva.
 
Se olhamos para o hinduísmo em sua escola Advaita-Vedanta, por exemplo, não há a mínima dificuldade de reconhecer que Jesus possa ser Deus. Muito ao contrário, haveria dificuldades sérias se Jesus não pudesse ser Deus. É que para esse hinduísmo, a substância de todas as coisas é Deus. Deus é o ser primordial que subjaz informe sob o véu das diversas formas finitas, passageiras e ilusórias dos entes mundano-humanos. É o Um permanente que está na multiplicidade fenomênica e fugaz dos muitos. Pelo atman (alma, centelha divina), emerge no homem a consciência de ser Deus, Brahman, de tal modo que a afirmação de Jesus valeria para todo homem iluminado: “Eu e o Pai somos um”. Nesse sentido, Jesus seria  modelo do homem que toma consciência de ser uma só coisa com o divino.
 
Vejam. São duas perspectivas opostas e excludentes. Uma diz que nada é divino, que tudo é prosaico. A outra diz que tudo é divino, que nada é sem maravilha.
 
Julgo que a perspectiva do hinduísmo está mais próxima da verdade, pois vai além da simples análise da estrutura empírica das coisas, suas causas, seus efeitos, para considerá-las sub specie æternitatis, no seu ser, cuja fonte não pode ser temporal, mas eterna, divina, consciente de si mesma. É mais sensato dizer que o ser é divino do que dizer que tudo é um arranjo prosaico sem sentido ulterior, para além das estruturas físico-matemáticas. Até porque, para afirmar o sem-sentido das coisas, se há sempre de encaixar a pretensa falta de sentido num sentido globalizante. A razão acaba sempre triunfando da não-razão, e com isso indica o primado do Lógos.
 
Se, do nosso ponto de vista, o hinduísmo está mais próximo da verdade do que a cultura ocidental secularizada, o que diferencia dele o cristianismo é a doutrina da criação. Esta diz que o ser das criaturas não é feito da estofa divina, mas é um ser novo, distinto do ser divino, embora doado por ele. Só o Ser subsistente divino pode doar ser e constituir o ser novo, que é novo porque não é da substância divina incomunicável. A criação, ao consistir nessa doação de um ser novo, não desliga, contudo, o criado do Criador. A comunicação não é da substância divina, mas é comunicação de ser que tem sua fonte na substância divina. A presença constante do Criador no criado é inegável. Só que o Criador está no criado como causa ou como aquele Ser que lhe está doando ser novo a todo instante (creatio continua). Quando o Ser doa ser, não há diminuição do Ser nem incremento de perfeição no universo do ser. O ser doado não tira nem acrescenta nada ao Doador, mas é um seu reflexo. Sendo reflexo, o ser da criatura não é propriamente o ser divino, como quer o hinduísmo, mas, por ser não qualquer reflexo, mas reflexo de Deus, não é, de jeito nenhum, o ser prosaico, aleatório e sem sentido como quer o Ocidente racionalista, empirista e cientificista. Somos divinos porque somos da raça de Deus. Somos também chamados a receber com mais intensidade a vida divina por meio de Cristo, que, sendo Deus e homem, comunica-se com os homens como homem para levá-los como Deus a como que fundir-se com a divindade, o mare magnum ou oceano da paz e do autorregozijo.

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