Pular para o conteúdo principal

Ser e ente - uma nota sobre o pensamento de Heidegger

Ser e ente. Heidegger acusa a tradição filosófica ocidental de ter-se esquecido do ser para falar somente do ente. O ente é o que é, o que está aí. Uma pedra, uma árvore, um martelo… Tudo o que pertence ao mundo, tudo o que podemos usar, tudo o que podemos conhecer, tudo o que podemos fabricar… é ente. O ente tem um sentido delineado pela nossa visão, que pode ser utilitária ou teórica. No dia a dia estabelecemos uma relação utilitária com vários entes, como a escova, a porta, a lâmpada… As diversas ciências tratam teoricamente das diversas regiões de ente: a física trata do ente sensível móvel; a química trata do ente sensível cuja composição pode ser analisada e alterada; a matemática trata do ente quantitativo… A técnica manipula os entes, sempre buscando o maior resultado com o menor emprego de meios. A técnica serve aos interesses humanos, mas de tão importante que se tornou, passou a dominar o próprio homem. Vivemos hoje numa civilização que está submetida à técnica.
 
E a filosofia? Ela deveria tratar do ser, mas deixou-se, segundo Heidegger, encantar pelo ente: ela trata das essências dos diversos entes; trata também do ente sumo, visto como fundamento dos demais entes. O início da dominação da técnica estaria nesta atitude da filosofia de optar pelo ente e se esquecer do ser. O ente pode ser representado e dominado pelo sujeito que o pensa. Na modernidade, prevaleceu mesmo a concepção de que o sujeito põe o ente. Daí para a tecnocracia foi um pulo.
 
O ser está na raiz do ente e é esquecido. O que é o ser? Heidegger não ousa defini-lo, mesmo porque uma sua definição o tornaria algo como um ente. Se o ser não pode ser definido, o que resta dizer sobre ele? Do ser só se pode falar por metáforas e pela linguagem poética, insiste o último Heidegger.
 
O ser é a luz do ente. É o que dá visibilidade e tonalidade ao ente, mas nunca se reduz ao ente. É o aparecer do ente que aparece. Sem o aparecer, o ente que aparece não seria possível, mas o aparecer do ente como tal não é exatamente o ente que aparece como tal. O ente que aparece, aparece no interior do aparecer, que é mais amplo do que o ente. O que é esta luz? O que é este aparecer que permite que o ente apareça? Segundo Heidegger, o ser mesmo nunca é algo a que possamos apontar: está ali. O ser só se mostra escondendo-se. Se ele é o aparecer mesmo, não pode ser nenhuma coisa que aparece no interior do aparecer. O aparecer é condição de possibilidade de tudo o que aparece, mas não é ele mesmo algo que aparece no interior do aparecer. A condição de possibilidade está sempre na raiz. Não podemos apontar esta condição, pois ele seria a própria condição de todo apontar e de todo apontado. Cumpre notar ainda que, segundo Heidegger, o ser (a luz que ilumina o ente ou a aparecer no interior do qual o ente aparece) é histórico e temporal. O ser não é uma estrutura estável. Em cada época ou cultura, o ser se dá de maneira diversa. Assim, o ente é sempre visto de acordo com a luz - histórica - do seu aparecer. 
 
Falar do ser ou pensá-lo incute reverência, justamente porque o ser não está à disposição como o ente. Tratar do ser não gera lucro ou vantagens como quando tratamos dos entes. Por isso, talvez, não há interesse em buscar a verdade do ser. No entanto, é o ser a origem de todo ente.

Nestas poucas linhas procurei expor algo do pensamento de Heidegger. Não se trata do meu pensamento.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir