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O ofício do sábio segundo S. Tomás de Aquino



Trecho da minha monografia de graduação em filosofia. Escrevi-a aos 21 anos de idade, mas a monografia hoje está perdida. Eu tinha uma cópia, emprestei-a e não me devolveram.
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Ser sábio é dito daqueles que, considerando o fim, tudo ordenam em conformidade com ele: "pertence ao sábio ordenar". As artes arquitetônicas ou principais dirigem as inferiores, assim como a arte médica ordena a arte farmacêutica, uma vez que o fim da farmácia é a medicina. Desse modo, são chamados sábios os artífices das artes arquitetônicas, pois que lhes compete ordenar para o devido fim as artes inferiores.

Todavia, o sábio por excelência, o único propriamente digno desse nome, é o que considera o fim último de todas as coisas e, por isso, está em condições de tudo ordenar em conformidade com ele: "O nome sábio, porém, é simplesmente reservado só para quem se dedica à consideração do fim do universo, que é também o princípio".

O propósito fundamental de Santo Tomás é realizar o ofício de sábio, ou seja, considerar o fim último do universo, que é também o Princípio de todas as coisas. Tal propósito está claramente exposto no primeiro capítulo do primeiro livro da Suma contra os gentios.

Como teólogo cristão que é, o Aquinate tem plena consciência de que a sabedoria por excelência está encerrada na verdade professada pela fé católica, que, evidentemente, considera Deus, que se nos revelou em Jesus Cristo, como o princípio e fim de todas as coisas. Daí a frase de Santo Tomás, que liga o conceito de sábio ao de verdade católica: "Confiando na piedade divina para prosseguir neste ofício de sábio, embora isto exceda nossas forças, temos por firme propósito manifestar, na medida do possível, a verdade que a fé católica professa, eliminando os erros contrários a ela".

Na Suma Teológica, Santo Tomás aplica-se o título de "mestre da verdade católica" e define a teologia (sacra doctrina) como "de toda a sabedoria humana..., a mais alta, não relativa, mas absolutamente". Ora, sendo a verdade católica a suprema sabedoria, o mestre da verdade católica deve ser considerado o sábio por excelência.

Vê-se, pois, que tanto na Suma contra os gentios quanto na Suma Teológica, embora sejam obras distintas quanto à finalidade e ao modo de abordar as questões, a preocupação do autor é a de tratar da verdade suprema das coisas, tal como convém a um sábio, e transmiti-la aos outros.

Essa verdade, como dito, encontra-se na fé católica, cujo conteúdo provém da revelação que o próprio Deus, princípio e fim do universo, fez de si mesmo e do plano de sua salvação. Disso Santo Tomás, teólogo católico, não duvida, é claro.

Acontece, porém, que compete também ao sábio refutar os erros contrários à verdade suprema. Como poderia o sábio, no caso o teólogo (“mestre da verdade católica”) disputar com alguém que não aceita a autoridade das Sagradas Escrituras, em que se encontra a revelação de Deus?

"Deve-se recorrer à razão natural", responde Santo Tomás. É então que vem à tona a questão das relações entre fé e razão. Os princípios da razão natural são universalmente válidos, de modo que com ela todos devem concordar. Se a razão não pode demonstrar toda a amplitude da verdade revelada, ela poderá, sem dúvida, orientar o homem para a conveniência de acatar a revelação, já por demonstrar seus preâmbulos (praeambula fidei), sua conveniência e seu fato histórico, já por indicar que a verdade da fé não é contrária à razão, mas está para além de sua capacidade finita de compreensão.

O Doutor Angélico confia profundamente no acume da razão, pois que a considera um dom de Deus. Pela razão, o homem pode atingir verdades fundamentais, tanto no plano teórico como prático. Com efeito, a razão pode, a partir das criaturas, alcançar o criador e glorificá-lo como convém; chegar ao princípio absoluto do mundo através das coisas sensíveis. A isso, aliás, São Paulo já acenara, retomando a tradição sapiencial da Escritura.

Conforme Aristóteles, a quem Santo Tomás se dirige sempre com o respeitoso cognome de "o Filósofo", a razão constitui a diferença específica que distingue o homem dos brutos. Sem ela, o homem já não seria homem. Renunciar ao uso da razão equivaleria a afrontar a própria dignidade humana.

Por tudo isso, o Santo Doutor valoriza muito a razão, embora tenha consciência de seu limite criatural, e convida o homem a valer-se constantemente dela. Mesmo a aceitação da revelação, cujo conteúdo ultrapassa os limites da razão, não se faz contra ela, mas, para ser um ato responsável e humano, com a ajuda dela. Segundo Santo Tomás, o homem não se submeteria à fé se a razão não lhe indicasse que deve fazê-lo. Aqui estamos diante de uma profunda questão filosófica. Está indicado que o filósofo, no exercício do próprio ato filosófico, que confere à razão absoluta autonomia em seu próprio domínio, pode reconhecer a conveniência do assentimento à fé. A tal atitude, que perfaz o caráter de um autêntico ato de racionalidade, Santo Tomás alude na frase: “O homem não acreditaria se não visse que o objeto de fé é credível”. Não se crê em qualquer coisa, mas o reconhecimento do fato de uma autêntica revelação de Deus, que é infalível, leva o homem ao ato de fé na Palavra divina: "Ora, não cremos em verdades que excedem a capacidade da razão humana, a não ser que tenham sido reveladas por Deus".

O pensamento de Santo Tomás é, sem dúvida, ao mesmo tempo, a afirmação da racionalidade humana e o reconhecimento da verdade revelada em Cristo. Fé e razão, assim, são as asas que levam o homem para as altitudes da contemplação da Sabedoria eterna.

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