Pular para o conteúdo principal

Ser e pensar são um

Transcendentalmente falando, ser e pensar são uma coisa só. Não pode haver o ser sem o pensar nem o pensar sem o ser. Parmênides viu esta verdade neste nível transcendental, que é o nível do pensamento em si e do ser em si. Ser e pensar são o mesmo! Aqui tanto o realismo quanto o idealismo têm a sua parte de razão, mas, para dizer com Hegel, ambos são suprassumidos, isto é, são afirmados (no que têm de verdadeiro) e negados (no que têm de falso) numa síntese superior, absoluta. Tomás de Aquino reconhece que Deus, absolutamente simples, é identidade pura e sempre atual de ser e pensar. O Absoluto, em Hegel, é Idea que sabe de si, Ser consciente de si. Karl Rahner dizia que ser é ser-junto-de-si. O ser sabe-se junto de si na claridade daquele “espaço” em que o ser mesmo se mostra. É um absurdo, em nível absoluto ou transcendental, falar de ser e, ao mesmo tempo, não reconhecer o pensar, que é o aparecer do ser. 

No nível categorial, que é o nosso humano, as coisas mudam de figura. São diversos os pensamentos e são diversos os seres. O pensamento não é simplesmente o ser nem o ser é simplesmente o pensamento. Posso pensar algo que não existe e pode existir algo que não penso. O ser aparece num processo. O pensamento se forma num processo. 

No entanto, mesmo no nível categorial, o transcendental deixa sua marca, como não poderia deixar de ser. Uma verdade transcendental que não se fizesse presente de alguma maneira em todo o categorial já não seria transcendental. 

O ser para nós é sempre o ser pensado. Sei que aparecem seres, mas aparecem sempre no pensamento. Até o ser que afirmo desconhecer aparece no pensamento, não fora dele, ainda que apareça como desconhecido. Há aqui uma intranscendibilidade do pensar: não se pode vagar fora do pensamento. Fora do pensamento não se dá nenhuma aparição do ser. Eis a parte de verdade do idealismo. 

De outro lado, nosso pensamento é sempre pensamento do ser. Não é possível o pensamento puro, sem o ser. A fenomenologia nos mostrou que o pensamento é intencional, é sempre pensamento de alguma coisa. Mesmo quando o que pensamos não existe in rerum natura,  o pensamento sempre é pensamento do ente (lógico ou fictício). Será pensamento do ente real se o pensado se der fora do nível puramente lógico ou fictício, ou seja, se se der no nível da realidade, in rerum natura.  A verdade é que o pensamento não pode transcender o ser. Está amarrado a ele. O ser é intranscendível. Eis a parte de verdade do realismo. 

Os casos extremos do nível categorial, em que ser e pensamento parecem estar distantes, reforce-se, revelam a mútua pertença de ser e pensamento. O ser in rerum natura que não penso (porque o desconheço) não é um puro ser sem pensamento; é pensado de alguma maneira por mim: é pensado como desconhecido. Ainda: mesmo que ele não me seja conhecido (ou que seja tão somente conhecido como desconhecido), só pode existir porque foi pensados por Deus. Não há ser sem referência ao pensamento! De outro lado, o ser lógico ou o ser fictício não constituem um puro pensamento sem ser: ou eles se fundam na realidade (entes de razão), ou são uma realidade (as leis do pensamento são as leis do ser:  os primeiros princípios) ou são possibilidade de ser real (ente fictício), embora pura possibilidade. O único absolutamente impossível é o que não pode ser pensado. Não há pensamento sem referência ao ser! 

Essa mútua pertença, no plano categorial, de pensamento e ser foi expressa pela filosofia de Aristóteles e pelos escolásticos quando diziam que o sujeito cognoscente em ato e o objeto conhecido em ato se identificam. É que a mútua pertença do pensar e do ser, mesmo no nível categorial, traz a marca da identidade transcendental de ser e pensamento.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O finito apela ao Infinito

  O ponto que trago remete a uma via metafísica negativa, onde a crítica da finitude do ente nos conduz, não apenas à constatação de sua limitação, mas à impossibilidade de que o limite tenha a última palavra sobre o ser. O nada não pode ser o “além do limite”, pois o nada não é. Assim, a própria noção de limite exige um ser sem limite – um ser que seja ser puro, que exclua toda não-existência. Vamos então desenvolver o argumento na forma de um discurso ontológico contínuo, com base nessa intuição: ⸻ A finitude como apelo ao ser ilimitado Começamos pela constatação mais imediata: há seres, mas os seres que encontramos são finitos. Eles não são tudo o que poderiam ser. São marcados pela limitação, pela mutabilidade, pela dependência. São entes que possuem o ser, mas não o são em sua plenitude. Essa constatação, longe de ser trivial, contém uma exigência profunda: se tudo o que existe fosse finito, então o ser mesmo estaria limitado. Haveria uma fronteira que o ser não ultrapassa. O ...

Confissões de um metafísico em tempos de niilismo

Não comecei pela dúvida, mas pela admiração. Não fui lançado à existência como quem acorda em um mundo estranho, mas como quem, ainda sem saber nomear, intui que há algo — e que esse algo brilha. Comecei pela confiança de que o ser tem sentido. E o primeiro a me dar palavras para esse pressentimento foi um frade medieval, Tomás, cuja inteligência parecia ajoelhar-se diante do real. A princípio, maravilhou-me a harmonia entre fé e razão: Deus não era o adversário do pensamento, mas sua origem e fim. Na Suma Teológica, encontrei não apenas respostas, mas um método de humildade intelectual, onde pensar é um ato de justiça ao ser. A filosofia, assim, se tornava oração: buscar o sentido do ente como quem busca o rosto do Pai. ⸻ Mas à medida que crescia em mim a luz da metafísica do esse, aumentava também a consciência das sombras que a modernidade lançou sobre o ser. O mundo que me cercava — um mundo de técnica, de cálculo, de vontades cegas — parecia ter perdido a capacidade de se pergunta...

Ruptura ou transformação? Paradigmas hermenêuticos da modernidade segundo Henrique Cláudio de Lima Vaz

  Resumo Este artigo propõe uma análise sistemática da concepção de modernidade em Henrique Cláudio de Lima Vaz, com base na obra Raízes da Modernidade. O autor situa-se entre duas interpretações hermenêuticas predominantes: a modernidade como ruptura e a modernidade como transformação da tradição medieval. A partir dessa tensão, Lima Vaz articula uma leitura genética da modernidade, que reconhece sua originalidade simbólica sem ignorar suas raízes intelectuais na crise do século XIII. Para isso, o artigo explora as interpretações de Carl Schmitt, Karl Löwith, Eric Voegelin, Marcel Gauchet e Hans Blumenberg, conforme analisadas por Lima Vaz. 1. Introdução A modernidade, em seu surgimento e estrutura simbólica, constitui um dos temas mais debatidos da filosofia contemporânea. Henrique C. de Lima Vaz, em Raízes da Modernidade, propõe uma leitura filosófica da modernidade a partir de sua gênese intelectual na Idade Média, particularmente no século XIII. Longe de reduzir a modernidade ...