Pular para o conteúdo principal

Infalibilidade e indefectibilidade da Igreja

Infalibilidade e indefectibilidade: distinção, exemplos e formas de exercício

A doutrina católica distingue entre a indefectibilidade e a infalibilidade da Igreja. Pela indefectibilidade, a Igreja recebeu de Cristo a promessa de que não pode trair a fé. Trata-se de um carisma de fidelidade que assegura que, apesar dos pecados de seus membros e das limitações históricas de suas expressões, a Igreja não falhará no essencial da transmissão do Evangelho. Já a infalibilidade é a forma especial e qualificada desse dom: em certas condições, a Igreja pode definir de maneira irreformável uma doutrina de fé ou de moral, seja por um ato solene, seja pelo testemunho constante do Magistério Ordinário Universal.

Na indefectibilidade, encontramos exemplos de como a Igreja, ao longo da história, protegeu o núcleo da fé mesmo quando utilizou formulações que, mais tarde, se tornaram ultrapassadas. Assim aconteceu, por exemplo, com algumas condenações medievais de teses filosóficas ligadas ao aristotelismo ou ao averroísmo. Essas medidas, no contexto, tinham a função de salvaguardar a fé no Deus criador e na responsabilidade moral do homem, mas as fórmulas usadas perderam relevância com a evolução da filosofia. O núcleo que se queria defender — a transcendência do Criador e a liberdade humana — permanece válido, ainda que a formulação concreta se revele obsoleta. Temos também Roma condenando os que negavam a autoria de Moisés do Pentateuco. Hoje está claro para os exegetas que Moisés não pôde ter sido o autor dos cinco primeiros livros do AT, mas a Igreja, à época, mesmo de maneira que se mostraria equivocada depois, quis proteger-se contra o espírito historicista que desmantelava a transcendência da Escritura, ou seja, a verdade que se procurou defender ou o erro que se procurou afastar era muito mais importante para a salvação do que a maneira com que se fez e que mais tarde se tornou obsoleta. Esse é o sentido da indefectibilidade: a Igreja não falha no essencial, mesmo podendo obrigar, em certo tempo, a adesão a expressões que depois necessitam de revisão.

Já a infalibilidade se exprime de duas formas. A primeira é o magistério solene, quando o papa fala ex cathedra ou quando um concílio ecumênico, em comunhão com o papa, define um dogma. A segunda é o Magistério Ordinário Universal, isto é, o ensino constante e unânime dos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, ainda que sem declaração solene. Nesse caso, a Igreja ensina infalivelmente uma doutrina de fé ou de moral, desde que seja apresentada como obrigatória para todos os fiéis. É nesse âmbito que se encontram, por exemplo, a condenação do aborto e da eutanásia, a indissolubilidade do matrimônio e a impossibilidade da ordenação sacerdotal das mulheres: nunca proclamadas como novos dogmas, mas ensinadas de modo universal e definitivo. Na verdade, tal modalidade de magistério precisa ainda de muito aprofundamento. O que é de fato ensinado como definitivo no Magistério Ordinário Universal? Como se o pode distinguir? 

Mesmo no campo da infalibilidade, o núcleo proclamado é imutável, mas pode ser expresso em linguagem contingente. O que é irreformável não são as palavras em si, mas o conteúdo que elas guardam. No Concílio de Calcedônia (451), por exemplo, definiu-se que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma só pessoa e duas naturezas. O núcleo é irrenunciável, mas a formulação recorre a categorias gregas (physis, hypóstasis) próprias do século V. Da mesma forma, no dogma da Assunção de Maria (1950), a verdade proclamada é que Maria participa plenamente da ressurreição de Cristo em sua totalidade humana, corpo e alma. O núcleo é irreformável, mas a linguagem emprega imagens cosmológicas de “céus” e “glória celeste”, que refletem a visão de mundo da época e podem ser reinterpretadas.

Assim, na indefectibilidade, a Igreja pode obrigar a formulações que, depois, se mostram datadas, mas o núcleo de fé é preservado. Na infalibilidade, seja em forma solene, seja no Magistério Ordinário Universal, o núcleo é proclamado de modo irreformável, embora possa ser expresso em linguagem contingente que exige hermenêutica e atualização. Desse modo, a Igreja manifesta, ao mesmo tempo, sua fidelidade absoluta à verdade revelada e sua condição histórica, que pede humildade e constante renovação das expressões de fé.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bento XVI e a evangelização para o futuro: uma âncora de sentido para a Modernidade

A reflexão de Bento XVI sobre a evangelização caracteriza-se por uma visão singularmente lúcida acerca dos desafios da modernidade e do futuro religioso da humanidade. Mais do que propor métodos ou estratégias circunstanciais, o papa operou um deslocamento decisivo: a evangelização é, antes de tudo, um serviço à verdade que sustenta o ser humano, e não uma mera tentativa de adaptação às tendências culturais do momento ou mera estratégia de proselitismo como se fosse uma questão de ganhar adeptos para um clube. Nesse ponto se compreende seu diagnóstico central: quando a fé e a espiritualidade perdem vitalidade, a própria sociedade perde um precioso bem; quando a referência ao transcendente se fragiliza, a humanidade fica exposta a formas de dissolução espiritual que lembram processos de extinção. Desde o início de seu pontificado, Bento XVI reconheceu que a Igreja precisava enfrentar, com coragem intelectual e espiritual, uma situação nova. A crise da cultura ocidental — relativismo, pe...

Marxismo cultural? O problema é muito mais profundo

A questão mais candente dos nossos tempos em face da fé cristã não é o “marxismo cultural”, esse espantalho que nem existe como é propalado, nem o campo de atenção mais originário é o político ou social. O grande problema é aquele anunciado por Nietzsche há mais de um século, ele mesmo defensor do niilismo (e, por sinal, profundo anti-socialista e, por, conseguinte, anti-marxista): a mudança radical do espírito e a introdução de uma nova época em que “os valores supremos perdem o valor; falta a finalidade; falta a resposta ao ‘por quê?’”. Essa nova época tem raízes longínquas, mas Nietzsche é quem tem plena consciência de seu desabrochar no ocaso da modernidade.  Depois de Hegel, a filosofia (as suas correntes majoritárias) caiu no domínio irrestrito do devir. O marxismo, como hegelianismo invertido, ainda procura estabelecer como fundamento uma estrutura estável: a lei do desenvolvimento histórico. Mas em geral, depois de Hegel, qualquer estrutura, por mínima que seja, tende a ser...

A Bíblia defende a submissão da mulher ao homem?

  O livro The Sexual Person: Toward a Renewed Catholic Anthropology , de Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, aborda a questão da dominação do homem sobre a mulher na Bíblia de forma crítica e contextualizada. Os autores exploram como as Escrituras refletem as normas culturais de suas épocas e argumentam que a tradição cristã deve discernir entre elementos históricos condicionados e princípios universais de moralidade e dignidade humana (8,6). ⸻ 1. A Bíblia defende a dominação do homem sobre a mulher? A resposta, segundo os autores, depende de como se interpreta a Bíblia. Existem textos que podem ser usados para sustentar uma visão hierárquica entre os sexos, mas também há passagens que sugerem uma relação de igualdade e dignidade mútua. O livro analisa essas duas perspectivas dentro do desenvolvimento da teologia cristã. 1.1. A visão subordinacionista Essa perspectiva entende que a Bíblia estabelece uma ordem natural em que o homem lidera e a mulher lhe deve submissão. Os principa...