Pular para o conteúdo principal

Amor de salvação


Sabemos pela fé que somos importantes aos olhos de Deus. A razão, dentro de seus limites, consegue mostrar que somos criados pelo Ser subsistente.

No entanto, à primeira vista e em nível meramente fenomenológico, nem sempre conseguimos ver que somos importantes, a não ser para nossos familiares e amigos mais íntimos. Na vida social podemos ser substituídos facilmente por outros. A engrenagem da sociedade e da história continuará a funcionar sem nossa presença. Tudo se passa como se fôssemos totalmente supérfluos e insignificantes. Sem a luz da fé e da razão metafísica, até mesmo a história e o universo inteiro parecem não ter sentido algum. Tudo parece caminhar para o vazio e nele se resolver. Tudo isso impressionou sobremaneira o autor do livro bíblico do Eclesiastes, que clamava: “Vanitas vanitatum, dixit Ecclesiastes, vanitas vanitatum et omnia vanitas” - "Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” (Eclesiastes 1,2). Heidegger, filósofo do século XX, dizia que o homem (Dasein) é um ser para a morte. Sartre, pensador existencialista de grande expressão, sustentava que o homem é uma paixão inútil.

Diante da contingência da vida de cada um de nós e mesmo de todo o universo, é grande aquele que escolhe amar. Amar para enriquecer o amado(a). Amor ágape, cujas características São Paulo descreve em 1Cor 13, 4-8. É agraciado quem recebe o amor enriquecedor. Amor que tira do anonimato e do abismo do nada. Amor que dignifica.

Escolher alguém ou uma vida contingente para amar é como conferir importância ao que aparentemente é sem importância. É escolher alguém para que ele seja, de alguma maneira, salvo do vazio para o qual tudo parece tender. O amor é força de eternidade, porque é força contrária à queda no nada. É força de personalização contra todo movimento despersonalizante.

Como quer que seja, nós podemos escolher ser apenas uma peça a mais da grande engrenagem impessoal dos acontecimentos. Podemos não escolher amar. Podemos não ter a sorte de ser amados. Afinal, podemos sobreviver e tocar a vida sem precisar das coisas do amor. Sobrevive-se. No fundo da alma, porém, existe a presença recôndita do Amor que pede que amemos e sejamos amados. Mas é possível viver sem profundidades! É possível viver na superfície!

Ultimamente tenho refletido mais sobre a grande finalidade da existência humana. No mundo atual deixamo-nos arrastar e escravizar pela ideia de que temos de ser eficientes o mais possível e a todo custo. O risco é deixarmos de lado o amor. O risco é perdermos a convivência amorosa. O risco é deixar-nos tragar pelas forças de despersonalização.

Quantas vezes pensamos erroneamente que o fazer é mais importante do que o conviver! Convivemos para fazer ou fazemos para conviver? Quantas vezes deixamos os instrumentos da eficiência falar mais alto do que as exigências de amar e de ser amado!

Se, como cristãos, acreditamos que a condivisão da vida com o Deus-Trindade é a suprema finalidade da nossa existência, não podemos, como humanos, ignorar os reflexos da comunhão trinitária em nossas relações fraternas, aquelas que dão valor ao amor e à convivência alegre, ao amor que salva do vazio!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir