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Resumo de uma parte de um livro sobre moral

BRUGUÈS, Jean-Louis, Introduzione. Il ritorno della morale. In ____ Corso di teologia morale fondamentale. 1: Che cosa è la morale e a che serve, Edizioni Studio Domenicano, Bologna 2004, p. 9-42.

Introdução

O autor começa referindo-se à grande crise da moral vivida sobretudo a partir da onda libertária de 1968. Em um clima refratário à lei e amante da pura liberdade, a moral era vista como algo repressivo e limitante. Reivindicavam-se os direitos do homem, esquecendo-se, porém, de que sobre ele recaem também deveres.
Atualmente, entretanto – o autor escreve nos anos 90 -, a moral retorna! A onda revolucionária não conseguiu as liberdades esperadas. Problemas como a AIDS, a pobreza e o desencanto com as ideologias rederam os homens mais comedidos em relação a uma fácil libertação que proviria do uso da pura liberdade.

Mesmo as democracias, tão sonhadas pelas sociedades modernas, dão sinais de cansaço e apresenta problemas: o desinteresse dos jovens pela vida cívica, os escândalos, o domínio desenfreado dos mass media... 

Tudo isso apresenta grandes desafios à nossa época, que, embora corra o risco de resvalar no niilismo, dada a desilusão com as ideologias, tem um afinado senso e uma clara exigência de autenticidade e transparência. Se os problemas hoje vividos são de ordem moral, de ordem moral devem ser as soluções indicadas. Daí falarmos hoje de retorno da moral. Nossa civilização hoje dela precisa, mais do que nunca, para prosseguir o seu caminho, sem deixar-se destruir pela desilusão ou pelo niilismo.

A Igreja, por sua vez, oferece ao nosso tempo dois grandes textos de referência relativos ao problema moral, o Catecismo da Igreja Católica e a Carta Encíclica «Veritatis Splendor», textos estes que, seguindo o horizonte apontado pelo Concílio Vaticano II, se enquadra num espírito de renovação e de diálogo aberto com o mundo.


A Encíclica "Veritatis Splendor" 

Depois de cuidadoso trabalho de preparação, e só depois da publicação do Catecismo da Igreja Católica em 1992, ao qual a Veritatis Splendor faz constantes referências, três são os objetivos apontados pela encíclica:

a) Salvaguardar o patrimônio ético-cultural do cristianismo dentro da consciência de ele tem muito a oferecer ao homem do nosso tempo e às gerações futuras;

b) Reafirmar a idoneidade e a autoridade do Magistério Eclesial para interpretar, não somente o depositum fidei, mas também a lei mora natural, cujo respeito é decisivo para a vida humana;

c) Confrontar-se com a dimensão secularizante da Modernidade que transcura ou rejeita a relação com a Transcendência. Para a encíclica, a vida moral não pode ser compreendida sem a abertura à Transcendência, medida e meta do agir humano.

Esses objetivos se entendem em um contexto de crise ética e religiosa vivida no final do século XX, ao qual a Encíclica reage. A crise se mostra tanto externa quanto internamente à Igreja e ameaça atingir o patrimônio ético-cultural do cristianismo e a antropologia que lhe é subjacente, podendo causar assim um grande dano ao homem considerado pessoalmente e à humanidade em seu todo.

Concepções fundamentais da encíclica

Entre as concepções fundamentais da encíclica, podemos destacar:

a) A moral é busca de perfeição. Aqui se rejeita uma visão de moral centrada somente na observância formal de normas ou baseada na utilidade ou consequências imediatas que os atos morais podem acarretar; antes, leva-se em consideração a pessoa humana no seu todo, com seu anelo de verdade, de bem e de beleza, ou seja, seu desejo do Absoluto, de Deus. A moral é caminho de perfeição, não de uma perfeição irrealizável, que não tem olhos para as limitações humanas, mas de uma perfeição a que devemos tender e que tem como fonte o apelo de sair de nós mesmos e de nos deixar guiar pelo único Bem. Cristo é Mestre e Modelo da perfeição moral a que o homem é chamado.

b) A vida moral faz referência à Transcendência. A perfeição a que o homem é chamado não é uma perfeição moral em sentido estrito, mas é uma perfeição transcendental, que supõe uma relação com o Outro Transcendente. O desejo de Deus (de verdade, de bem e de beleza) está inscrito no mais íntimo do homem. Essa tendência inata ao Outro faz com que o homem se confronte com a transcendência da lei, sua objetividade e universalidade. Conformar-se à lei é condição do correto uso da liberdade. A moral cristã não é heteronomia, pois existe dentro de nós o apelo à verdade e ao bem, que nos encaminha naturalmente para o reconhecimento da lei moral; mas também não é autonomia radical, porque nos confrontamos em consciência com uma verdade que, embora esteja em nós, não é simplesmente produzida por nós. Dada a transcendência da lei, tem-se o grave dever de formar a consciência conforme às suas exigências.

c) Existe uma relação dialética entre o sujeito moral e seus atos. O sujeito lhes é transcendente – por isso seria lúcido falar de uma opção fundamental do sujeito -, mas os mesmos atos são abertos à transcendência do sujeito e, dada a sua bondade ou maldade, são, por isso, capazes de mudar a opção fundamental do sujeito. Aqui se rejeita a moral dita da “opção fundamental”, para a qual, se um cristão tem sua opção fundamental voltada para Cristo, não seria pecado um ato particular que desrespeitasse a lei divina.

A encíclica está consciente de que a nova evangelização está estreitamente ligada ao problema moral e, por isso, deseja que o fermento moral do cristianismo atinja toda a sociedade e produza frutos. Os totalitarismos e o relativismo são vistos como coisas a evitar.

O Catecismo da Igreja Católica 

O Catecismo da Igreja Católica veio a lume em 1992 e procura expor, de forma lúcida, calma e tranquila, o conjunto da fé católica, inclusive a parte relativa à moral, que vem apresentada em sua íntima interconexão com o dogma e a liturgia. Assim, apresenta ao mundo, de forma orgânica e sistematizada, o conjunto da fé católica qual um precioso tesouro religioso, mas também cultural, para benefício dos cristãos e de toda a humanidade. Desse modo, se atende a uma necessidade, qual seja, aquela de conservar a memória – e a Igreja conta com dois mil anos de história e com um rico patrimônio teológico-filosófico-cultural! – diante de uma cultura que corre o risco de perdê-la.

Depois de consultas ao episcopado e de acurado trabalho, a parte moral do catecismo apresenta num primeiro momento o fundamento da vida moral cristã: a vida no Espírito, a sequela Christi; num segundo momento, a exposição das particularidades da vida moral em confronto com o Decálogo, ao qual são associadas as virtudes morais correspondentes.

A parte do Catecismo reservada à moral lança seu olhar sobre a questão do homem e a apresenta em relação com a questão de Deus. “Non si può parlare correttamente dell’uomo se non si parla anche di Dio” (p. 36). E para falar corretamente de Deus, devemos ouvir o que Deus mesmo diz sobre si – a Revelação!
Toda a visão cristã-católica do homem repousa no fato de ele ser “imagem e semelhança” de Deus; daqui sua intrínseca e inviolável dignidade, sobre a qual repousa o discurso moral. Toda a reflexão moral do Catecismo se baseia sobre a verdade da pessoa humana. Daqui se parte. Desse modo, o Catecismo, centrando-se sobre a dignidade da pessoa, está longe de propor uma “moral do códice”, e nesse ponto mostra-se grandemente inovador.

Pode-se dizer que a apresentação da moral do Catecismo é “moderna”, seja porque trata de questões atuais da vida moderna, seja porque baseia todo o seu discurso sobre a pessoa humana (a assim chamada “modernidade” colocara o sujeito como realidade primária), dotada de dignidade inalienável, de livre arbítrio e capaz de autodeterminar-se. Não se confunde, é claro, com a “modernidade” na medida em que esta transcura ou rejeita a relação de Transcendência, fechando o homem em si mesmo. Destarte, o Catecismo, ao contrário do que muitos julgam, é moderno, ainda que seja moderno passando por uma via lateral.
Com efeito, a moral católica conheceu, ao longo da história, dois grandes modelos de moral: de um lado, aquele que apresenta desde o exterior normas a serem observadas e cujo acento recai sobre a liceidade dos atos humanos (correspondência a normas prescritas), modelo este chamado pelo filósofo Michael Foucault de “moral do códice”; de outro lado, aquele centrado sobre o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da pessoa, sujeito da vida moral, chamado pelo mesmo filósofo de “moral da construção de si”.

As exigências dos tempos atuais mostram que a “moral do códice” já não satisfaz. Ninguém se sente satisfeito se, à pergunta – o que é bom e o que é mal, moralmente falando – se responde: “bom é o que se conforma à lei, mal é o que destoa da lei”. Os contemporâneos tem uma sensibilidade muito mais voltada para as questões relativas sobre o que pode realizar o homem, torná-lo mais livre e feliz, ou, em contrapartida, o que pode impedir-lhe a autorrealização. 

O Catecismo, na verdade, incorpora a “moral da construção de si”. Nele não vemos simplesmente uma lista de leis ou de mandamentos a cumprir. Se o esquema da apresentação mais específica da moral segue, como já havia feito Trento, os dez mandamentos, estes, contudo, são apresentados de forma bastante personalista – basta mencionar o fato de virem coligadas as virtudes correspondentes a cada mandamento. A noção de virtude nos reenvia para a responsabilidade do homem na construção de si mesmo.

Ainda mais, toda a moral do Catecismo encontra seu ponto de partida na dignidade do ser humano, criado e redimido por Deus e destinado à felicidade plena no Reino. Essa noção, ao mesmo tempo em que reconhece a primazia da graça e do agir salvífico de Deus, mostra a responsabilidade do homem, que, chamado por Deus, deve responder-lhe em liberdade, construindo-se, assim, a si mesmo. Realça também a dimensão social do homem, pois que sua resposta a Deus passa pela vida em comunidade (responsabilidade política, econômica, social), que tem na justiça, fundada na singular dignidade do homem, seu grande alicerce.

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