1. Proposições Evidentes e Proposições Demonstráveis
A epistemologia aristotélica distingue dois tipos de proposições:
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Proposições evidentes por si mesmas (per se notae): São aquelas cuja verdade é imediatamente reconhecida assim que se compreende o significado de seus termos. Exemplo clássico: “O todo é maior que a parte”. Elas podem ser:
- Evidentes em si e para nós (per se nota quoad nos) – acessíveis a qualquer inteligência normal.
- Evidentes em si, mas não para nós (per se nota per se, sed non quoad nos) – quando exigem um conhecimento prévio que nem todos possuem.
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Proposições demonstráveis (per aliud notae): São conhecidas apenas por meio de uma demonstração lógica baseada em premissas anteriores.
São Tomás, seguindo Aristóteles, defende que a ciência exige demonstrações e que a verdade última não pode constituir-se exclusivamente de proposições imediatamente evidentes. Isso se aplica à existência de Deus: mesmo que ela seja evidente em si, não o é para nós, pois não temos conhecimento direto de sua essência.
2. A Não-Evidência da Existência de Deus
A afirmação "Deus existe" é, segundo Tomás, objetivamente evidente em si mesma. Se soubéssemos o que é Deus, perceberíamos imediatamente que Ele não pode não existir. Para os bem-aventurados que contemplam a essência divina, sua existência é ainda mais evidente do que o princípio de não contradição. No entanto, para nós, a existência de Deus não é evidente, pois não conhecemos sua essência diretamente.
Essa posição contrasta com pensadores como São Boaventura e Santo Anselmo, que afirmavam que a existência de Deus era inata ou imediatamente evidente para a razão. Eles sustentavam que o ateísmo era impossível, pois negar Deus seria contraditório. São Tomás refuta essa ideia, argumentando que Deus deve ser conhecido por meio de um processo racional de demonstração.
Refutação de Três Argumentos a Favor da Evidência de Deus
1. O Argumento da Evidência Prévia
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Afirmação: Todo ser humano crê na verdade e no bem, e essas realidades implicam a existência de Deus. Se alguém acredita na existência da verdade, já admite, implicitamente, a existência de Deus, que é a Verdade suprema.
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Exemplo de Boaventura: A verdade é necessária, pois negar sua existência já a reafirma ("se a verdade não existe, é verdadeiro que ela não existe"). Como Deus é a Verdade, sua existência é evidente.
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Refutação de Tomás: Conhecemos o ser e a verdade de maneira geral, mas isso não significa que saibamos imediatamente que existe um Ser Subsistente, a Verdade em si mesma (Deus). O fato de reconhecer a verdade e o bem não significa que automaticamente reconhecemos sua origem transcendente. É preciso raciocinar e demonstrar que o ser em geral e a verdade em geral implicam o Ser e a Verdade subsistente. Bonino diz com propriedade: "São Tomás de Aquino não nega que toda apreensão da realidade, que é, antes de mais nada, uma apreensão do ser (ens), primeiro objeto do intelecto, implique uma certa apreensão de Deus. Mas não se trata de um conhecimento habitual, que já estaria lá, latente como um tesouro enterrado sob a areia, que bastaria desenterrar. O explícito não está em ato no implícito, nem o conhecimento distinto no conhecimento confuso. Não é porque, do alto do promontório, vejo que há ao longe árvores que formam uma floresta, que sei que existem carvalhos nessa floresta. Meu conhecimento do fato de que existe o ser, a verdade, o bem (ou até mesmo um bem supremo que chamamos de felicidade) não contém um conhecimento em ato da existência do Ser, da Verdade ou do Bem subsistente, em resumo, da existência de Deus. É necessário demonstrar, através de um processo intelectual adequado, que o ser comum, a verdade comum, o bem comum, ou seja, o ser, o verdadeiro, o bem, que encontramos no mundo de nossa experiência, exigem uma Causa transcendente. A estrutura fundamental do real, a saber, a distinção entre os seres por participação e o Ser subsistente, não é dada de imediato à inteligência humana. O conhecimento do ser comum fornece, de fato, o ponto de partida para todo conhecimento de Deus, e é nesse sentido que o conhecimento de Deus pode ser dito inato (cf. Ia, q. 2, a. 1, ad 1), mas chega-se à afirmação da existência de Deus apenas ao final de um raciocínio, de uma demonstração propriamente dita. Tomemos uma comparação. Um telescópio comum permite localizar uma nebulosa vaga. O famoso telescópio Hubble, por sua vez, me permite distinguir quinze estrelas nessa nebulosa. Certamente, elas já estavam ali objetivamente, mas eu não tinha, subjetivamente, um conhecimento explícito delas".
2. O Argumento da Evidência do Arquétipo
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Afirmação: Para conhecer as coisas, é necessário referi-las ao modelo divino (as Ideias eternas em Deus). Assim, todo conhecimento verdadeiro implicaria um conhecimento direto de Deus como seu fundamento.
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Perspectiva Agostiniana: A luz da verdade provém de Deus e toda verdade é reconhecida apenas porque Deus a ilumina diretamente.
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Refutação de Tomás: Deus é a causa da nossa capacidade de conhecer, mas isso não significa que Ele seja o primeiro objeto conhecido. O intelecto humano não acessa diretamente Deus, mas apenas as realidades sensíveis, chegando a Deus por meio de um processo racional, e não por uma intuição direta.
3. O Argumento Ontológico (Santo Anselmo)
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Afirmação: A simples ideia de Deus já prova sua existência. Se Deus é "o ser maior do que o qual nada pode ser pensado" (id quo majus nihil cogitari potest), então Ele não pode existir apenas na mente, pois um ser que existe na realidade é maior do que um que existe apenas no pensamento.
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Conclusão de Anselmo: Negar a existência de Deus seria uma contradição, pois implicaria que um ser maior pode ser concebido (um Deus que realmente existe).
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Refutação de Tomás: O argumento confunde a ideia de existência com a existência real. Não se pode concluir a existência de algo apenas a partir de um conceito. O fato de concebemos Deus como existente não prova que Ele exista na realidade, pois a existência não é um predicado da essência.
3. Consequências do Debate sobre a Evidência de Deus
A questão da evidência de Deus tem implicações em três áreas principais:
1. Filosofia: Deus é o ponto de partida ou o ponto de chegada?
- Se Deus fosse imediatamente evidente, a filosofia teria um caráter dedutivo, partindo de sua existência como princípio absoluto, como ocorre em Descartes e Spinoza.
- Para Tomás, Deus é o termo final da investigação filosófica, sendo alcançado indutivamente a partir do mundo sensível. A filosofia, nesse sentido, reconhece a limitação humana e a necessidade da experiência sensível para atualizar a inteligência e conhecer o transcendente realmente existente.
2. Antropologia: A inteligência humana é naturalmente voltada para Deus?
- Na visão platônica, a alma é uma substância espiritual completa e sua verdadeira realidade é o mundo inteligível. Assim, quanto mais elevado for um objeto, mais naturalmente ele é conhecido pela alma. Deus, sendo o Ser Supremo, deveria ser imediatamente conhecido.
- Para Tomás, influenciado por Aristóteles, a alma é a forma do corpo e seu objeto próprio é o mundo sensível. A inteligência humana não conhece diretamente Deus, mas chega a Ele por meio das criaturas. A ascensão a Deus requer um esforço racional e não ocorre de maneira espontânea.
3. O Ateísmo: é possível negar Deus?
- Para Anselmo e Boaventura, o ateísmo é impossível, pois a existência de Deus é evidente e negar isso seria uma contradição.
- Para Tomás, o ateísmo é possível e compreensível, pois o ser humano só conhece Deus indiretamente. Como o conhecimento de Deus se dá por meio da experiência do mundo, a realidade sensível pode ser um obstáculo para alguns, que não conseguem ver além dela.
- O ateu se engana porque não aprofunda suficientemente a busca pela explicação última do real. Mas, se levado a refletir de maneira mais rigorosa, pode ser conduzido a reconhecer a existência de Deus.
Conclusão
São Tomás rejeita a tese da evidência imediata da existência de Deus e defende que a razão humana precisa demonstrá-la por meio de um processo racional. Isso marca uma diferença fundamental em relação às correntes intuicionistas ou racionalistas, que consideram Deus um primeiro princípio autoevidente.
A posição tomista implica:
- Uma filosofia baseada na experiência sensível e na demonstração racional, discursiva.
- Uma antropologia que reconhece a limitação do intelecto humano e sua dependência do sensível para o ponto de partida da reflexão.
- A possibilidade real do ateísmo, que pode ser superado pela busca racional da verdade última.
A negação da evidência imediata de Deus, longe de ser um enfraquecimento da fé, valoriza o esforço racional na busca pelo transcendente, estabelecendo um caminho sólido para a teologia natural e o diálogo entre fé e razão.
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