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Marín-Sola e o desenvolvimento da teologia da graça

 

Francisco Marín-Sola, um teólogo dominicano do século XX, foi um dos principais responsáveis pela reformulação da tradição bañeziana dentro do tomismo. Ele buscou suavizar alguns aspectos da doutrina da graça e predestinação, especialmente no que diz respeito à relação entre a liberdade humana e a causalidade divina. Sua obra tentou conciliar a soberania absoluta de Deus com uma maior ênfase na cooperação humana, evitando o determinismo implícito no modelo de Bañez e Garrigou-Lagrange.

1. Contexto da Reformulação de Marín-Sola

A escola tomista tradicional, especialmente na versão de Domingo Bañez e Reginald Garrigou-Lagrange, defendia a moción física previa, segundo a qual Deus pre-move infalivelmente a vontade humana para o bem ou permite o pecado através de um decreto permissivo infalível.

Essa visão levantava críticas, pois parecia tornar Deus indiretamente responsável pelo pecado, já que Ele escolhia não conceder graça eficaz a alguns.

Francisco Marín-Sola percebeu essa dificuldade e tentou encontrar um caminho intermediário, dentro do próprio tomismo, que preservasse a soberania divina sem comprometer a liberdade humana.

2. Princípios Fundamentais da Teologia de Marín-Sola

A Rejeição dos Decretos Permissivos Infalíveis

Marín-Sola rejeitou a tese bañeziana de que Deus permite o pecado por meio de um decreto permissivo infalível. Para ele, essa visão fazia Deus ser, indiretamente, a causa do mal, pois:

Se Deus escolhesse desde toda a eternidade quem não receberia graça eficaz, então Ele estaria, de certa forma, determinando negativamente a condenação de alguns.

O pecado não precisa ser “predeterminado” por Deus, pois ele ocorre como uma consequência natural da liberdade defectível do homem.

A Distinção entre a Linha do Bem e a Linha do Mal

Seguindo um princípio metafísico semelhante ao de Jacques Maritain, Marín-Sola argumenta que existe uma dissimetria entre o bem e o mal:

No que se refere ao bem, Deus é a causa primeira e universal, pois todo ato bom é uma participação no ser divino.

No que se refere ao mal, Deus não é a causa direta, nem mesmo indireta. O mal surge não porque Deus preordenou sua permissão, mas porque a liberdade criada é imperfeita e pode falhar.

Dessa forma, ele escapa da dificuldade do bañezianismo tradicional, no qual Deus parece “escolher” infalivelmente quem será condenado ao inferno.

A Predestinação e a Reprovação

Marín-Sola mantém a doutrina tomista de que a predestinação é gratuita e não baseada nos méritos futuros (ante praevisa merita), mas reformula a reprobatio (rejeição divina dos condenados):

Deus não reprova ninguém antes de considerar suas ações.

A reprovação ocorre posteriormente ao pecado previsto (post praevisa demerita), o que significa que Deus não decide permitir infalivelmente a perdição de alguém sem antes prever sua resistência à graça.

Essa mudança é essencial, pois evita que Deus pareça “querer” positivamente a condenação dos réprobos.

3. A Graça e a Liberdade: A Revisão da Moción Física

O Problema da Graça Suficiente e Eficaz

No sistema de Bañez e Garrigou-Lagrange, a graça suficiente nunca se torna eficaz por si só, pois:

O homem sempre resistiria à graça suficiente, a menos que Deus lhe concedesse graça eficaz.

Assim, a distinção entre graça suficiente e eficaz não depende da liberdade humana, mas da decisão de Deus.

Marín-Sola considerou essa tese problemática, pois eliminava qualquer papel real da liberdade humana na salvação.

A Solução: Graça Suficiente como Verdadeiramente Capaz de Produzir o Bem

Para Marín-Sola, a graça suficiente é realmente suficiente. Ele propõe um modelo em que:

Se o homem não resiste à graça suficiente, ela se torna eficaz.

A graça eficaz não precisa ser uma nova graça adicional (como propunha Garrigou-Lagrange), mas sim o resultado natural da não resistência humana à graça suficiente.

Essa posição modifica substancialmente o bañezianismo, pois implica que:

1. A graça suficiente pode levar ao bem sem um influxo especial de graça eficaz.

2. A salvação não depende apenas de um decreto divino misterioso, mas da interação real entre a graça divina e a liberdade humana.

Essa ideia foi posteriormente desenvolvida por William Most, que aprofundou a distinção entre não resistência positiva e negativa.

4. O Papel da Liberdade Humana

Como Deus Causa os Atos Livres?

Marín-Sola reformulou a teoria da moción física previa, propondo que:

Deus move a vontade para o bem, mas de modo condicionado à não resistência humana.

O homem pode negar-se a agir, e essa negação (mera negatio) não é causada por Deus.

Se não houver essa resistência, Deus pode atuar plenamente na vontade e produzir o ato bom.

Essa abordagem preserva melhor a liberdade humana, pois:

1. A rejeição da graça vem do próprio homem e não de um decreto divino que infalivelmente permite essa rejeição.

2. A aceitação da graça não é um efeito mecânico da graça eficaz, mas uma interação real entre Deus e o homem.

5. Conclusão: A Importância da Teologia de Marín-Sola

A reforma teológica de Francisco Marín-Sola tem um impacto profundo na teologia católica, pois:

Mantém a soberania de Deus, mas rejeita o determinismo implícito do bañezianismo.

Preserva a liberdade humana sem cair no semi-pelagianismo.

Explica a reprovação de forma mais compatível com a universalidade da vontade salvífica de Deus.

Sua proposta abriu caminho para uma versão mais equilibrada da teologia da graça, que influenciou teólogos posteriores como Jacques Maritain, William Most e até alguns estudiosos tomistas contemporâneos.

Comentários

  1. A explicação foi muito interessante clara e objetiva .👏👏👏👏👏👏💫🤝👼🌹 .

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  2. Realmente é bastante complicado conciliar Deus e a liberdade humana dentro das nossas limitações. Mas a explicação da Doutrina de Marin Sola faz sentido, mas não responde a todas as perguntas. Pois Deus em sua Oniciencia sabe todas as escolhas que um homem fará antes dele nascer. Então não faria sentido Deus criar alguém para perdição eterna. Nesse sentido Deus somente criaria alguém desde que essa pessoa pudesse se salvar de alguma forma. Mas imaginemos uma pessoa que rejeita todas as possibilidades de salvação. Por que Deus criaria essa pessoa, mesmo sabendo que ela escolheria a perdição? Se Deus permite o mal, apenas em face de poder extrair bem maior,qual bem maior poderia ser extraído de uma alma que escolhe se apartar de Deus?

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    Respostas
    1. "Nesse sentido Deus somente criaria alguém desde que essa pessoa pudesse se salvar de alguma forma".
      É justamente aí que triunfa a teologia da graça suficiente: toda pessoa criada recebe toda graça necessária para sua salvação de modo absolutamente gratuito, por isso, tem plenas chances de se salvar. Se se perde, é por culpa própria de ter resistido à graça, porque, tal qual na Parábola dos Talentos, enterrou aquilo que Deus lhe deu. Com relação a saber Deus de antemão quem se salvará e quem não, vejo duas respostas. Primeiro ponto: a graça e o dom da vida são gratuitos, não em vista de algum mérito, então Deus não deixaria de conferir sua graça ou o dom da existência porque a pessoa não fará bom uso dela, justamente porque a graça não é uma recompensa por algum bem, é CAUSA do bem na criatura. Ou seja, eu não vejo Deus como sendo um utilitarista que faz cálculos do que traz mais dor ou mais sofrimento, vejo-o como alguém que dá tudo para que as pessoas se salvem, e as que não quiserem, deixa-as e faz-lhes justiça, mas dá chance para todos. O segundo ponto, S. Tomás lida dizendo que não se pode pensar a onisciência de Deus como sendo um conhecimento sucessivo, tal qual o nosso é. Deus conhece tudo em um ato único e simples, inclusive o futuro contigente, ou seja, não conhece o futuro contingente enquanto contigente. Diz o Doutor Angélico na Questão 14, artigo 13, da Ia parte da Suma Teológica: "Embora, porém, os contingentes se atualizem sucessivamente, Deus não os conhece, como nós, sucessivamente, tais como são, mas simultaneamente. Porque o seu conhecimento, como o seu ser, mede-se pela eternidade; e a eternidade, existindo toda simultaneamente, abrange o tempo todo, como já dissemos.". Ou seja, Deus não conhece o que vamos fazer como se fosse um expectador, Ele está fora do tempo, tudo para Ele é um eterno presente e, por isso, há uma desproporção entre a causa e o efeito, sendo a causa atemporal, simples, necessária e simultânea, e o efeito temporal, composto, contingente e sucessivo. Diz S. Tomás na resposta à primeira objeção da mesma questão: "Embora a causa suprema seja necessária, contudo, o seu efeito pode ser contingente, em virtude da causa próxima contingente. Assim, a germinação da planta é contingente, pela causa próxima, embora o movimento do sol, que é a causa primeira, seja necessária. Semelhantemente, o que Deus sabe é contingente, pelas causas próximas, embora a ciência de Deus, que é a causa primeira seja necessária.". Ora, o livre arbítrio é a causa próxima da ação humana, daí ser a liberdade contingente, ou seja, não necessária. Então Deus saber que a criatura se perderá não anula a causa próxima ser contigente, não determinada e possível de se salvar.

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