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“A última palavra”, de Thomas Nagel

Eis aqui um resumo do livro de Thomas Nagel — A última palavra —, publicado no Brasil pela Editora Unesp (São Paulo, 2001). 

Nagel defende a objetividade de base da razão e das operações do espírito humano, contestando com bons argumentos toda tendência que queira reduzi-los ao relativismo, ao subjetivismo e ao naturalismo. A razão só pode ser criticada pela própria razão, o que mostra que ela sempre tem a última palavra. Nagel faz ver o que os bons tomistas já sabem há muito: o espírito é constituído por uma relação estrutural com o ser, a verdade e o bem em seu alcance ilimitado, de modo que toda tentativa de negar essa estrutura, pressupõe-na. 

 

1. Introdução 

O texto introdutório de A última palavra, de Thomas Nagel, discute a questão da objetividade da razão em oposição ao relativismo e subjetivismo. Nagel argumenta que a razão, se existe, deve ser universal e não depender de perspectivas individuais ou sociais. Ele defende uma posição racionalista contra as diversas formas de ceticismo que questionam a possibilidade de pensamento objetivo.

O autor critica a disseminação do relativismo na cultura e na filosofia, argumentando que essa visão não apenas enfraquece o discurso racional, mas também compromete a capacidade de argumentação séria em diversas áreas do conhecimento. Segundo Nagel, o relativismo frequentemente se manifesta na forma de um ceticismo sofisticado, que sugere que todas as crenças são construções sociais ou expressões subjetivas, sem um fundamento racional independente.

Para Nagel, a característica essencial do raciocínio é a generalidade, ou seja, a capacidade de fornecer justificações que valham para qualquer pessoa em circunstâncias semelhantes. Ele rejeita a ideia de que todas as justificações dependam apenas da aceitação dentro de uma comunidade e defende que a razão deve ser um critério independente para validar crenças e decisões.

O autor também distingue entre críticas internas e externas à razão. As críticas internas apontam erros de raciocínio, mantendo a confiança na objetividade da razão. Já as críticas externas tentam desacreditar a própria razão, tratando-a como mera expressão de fatores subjetivos ou culturais. Nagel rejeita essa abordagem, argumentando que, mesmo ao criticar a razão, é necessário recorrer a princípios racionais, o que demonstra sua inevitabilidade. Por fim, ele reconhece que tanto afirmar quanto negar a existência da razão apresentam dificuldades filosóficas. No entanto, sustenta que, para sermos racionais, precisamos assumir responsabilidade por nossos pensamentos e buscar uma concepção de nós mesmos que não reduza nossas crenças a meros reflexos de perspectivas subjetivas.




2. Por que não podemos entender “de fora” o pensamento 

O capítulo discute a impossibilidade de compreender o pensamento “de fora” e critica as tentativas de relativizar a razão e a objetividade. Ele argumenta que, embora possamos examinar criticamente algumas de nossas crenças e raciocínios, sempre haverá um nível fundamental de pensamento que não pode ser relativizado, pois ele mesmo estrutura qualquer tentativa de crítica.


Nagel aponta que o subjetivismo e o relativismo falham porque inevitavelmente recorrem à própria razão para se justificarem. Se tudo fosse subjetivo ou relativo, essa própria afirmação seria incoerente, pois ela se apresenta como uma verdade objetiva. Assim, o subjetivismo global acaba se autocontradizendo ou tornando-se vazio de significado.

Ele também discute como certas formas de pensamento—como a lógica, a matemática e até a ética—não podem ser vistas apenas como construções culturais ou práticas contingentes, pois elas se impõem inevitavelmente a qualquer tentativa de reflexão. O próprio ato de tentar relativizar essas áreas já pressupõe seu caráter objetivo, tornando impossível uma perspectiva completamente externa.

Nagel critica filósofos como Wittgenstein e Rorty, que defendem que a objetividade é apenas um consenso dentro de uma comunidade linguística ou cultural. Ele mostra que essa visão não se sustenta, pois a verdade de certas proposições (como teoremas matemáticos ou leis científicas) independe do consenso. Para Nagel, o consenso ocorre porque os indivíduos, ao raciocinar, convergem para a verdade, e não o contrário.

No final, ele reafirma que o pensamento sempre nos remete à razão incondicional. Qualquer tentativa de contestá-la globalmente falha porque não podemos criticar algo sem um critério mais fundamental que o sustente. Assim, a razão tem a última palavra, não porque seja um hábito cultural, mas porque é a única estrutura que permite o próprio pensamento.


3. Linguagem 

Nagel argumenta que uma concepção equivocada da linguagem tem contribuído para a desvalorização da razão na filosofia contemporânea. Ele critica a tendência de tratar a linguagem como o fundamento do pensamento, enfatizando que a linguagem é um instrumento de expressão e não a base última da racionalidade. Embora a análise da linguagem possa ser útil para esclarecer conceitos, ela não deve substituir a investigação direta dos próprios conceitos e da lógica que os sustenta.

O autor rejeita a visão de que a linguagem é apenas uma prática cultural e que a lógica e a razão derivam de convenções linguísticas. Para ele, a linguagem deve se adequar a princípios racionais universais e não o contrário. Ele critica abordagens como a de R. M. Hare, que tentou fundamentar a ética na análise da linguagem moral, e aponta que tal abordagem desloca a explicação para um nível menos fundamental.

Nagel também examina o paradoxo de Wittgenstein sobre regras e significado, destacando que qualquer tentativa de reduzir o sentido a práticas linguísticas contingentes fracassa, pois não pode explicar a normatividade envolvida no pensamento. Ele concorda com a crítica de Saul Kripke ao reducionismo wittgensteiniano e argumenta que a intenção de significar algo não pode ser explicada por fatos naturais ou comportamentais, pois envolve uma estrutura normativa irreducível.

Por fim, Nagel sugere que a compreensão da linguagem matemática, por exemplo, só pode ser feita “de dentro”, por meio do próprio pensamento matemático. Ele rejeita a tentativa de explicar o sentido linguístico a partir de uma visão externa e defende que práticas linguísticas só fazem sentido quando interpretadas com base na racionalidade que as sustenta. Assim, ele reafirma que a razão e o pensamento são mais fundamentais do que a linguagem, e qualquer tentativa de relativizá-los com base em análises linguísticas é equivocada.


4. Lógica

Nagel argumenta que o pensamento lógico e matemático é um exemplo paradigmático de razão, pois sua validade transcende perspectivas subjetivas e relativistas. Ele defende que proposições como “2 + 2 = 4” ou o princípio da contraposição não podem ser questionadas sem que se dependa da própria lógica que se tenta relativizar. Qualquer tentativa de adotar uma visão externa e cética sobre esses princípios falha, pois o próprio ato de pensar já pressupõe sua validade.

Ele critica abordagens que tentam reduzir a lógica a um fenômeno psicológico, social ou cultural, mostrando que a razão não pode ser derivada de práticas contingentes. Mesmo que possamos questionar certas crenças matemáticas mais complexas, os princípios fundamentais da lógica e da aritmética se sustentam independentemente de influências externas.

Nagel também discute o paradoxo cartesiano da dúvida radical, mostrando que Descartes errou ao cogitar a possibilidade de um “demônio maligno” manipulando seu pensamento lógico. O próprio ato de considerar essa hipótese já pressupõe a validade da lógica e, portanto, não pode ser sustentado sem contradição.

Além disso, ele explora a relação entre razão e infinito, argumentando que a capacidade humana de compreender conceitos infinitos, como a sequência de números naturais, demonstra a irredutibilidade da razão a meros processos psicológicos ou evolucionistas. Esse entendimento vai além de qualquer prática finita e local, revelando uma estrutura racional objetiva e independente da mente humana.

Por fim, Nagel critica explicações reducionistas da razão, como o naturalismo evolucionista e o subjetivismo, e considera, sem endossar completamente, a visão religiosa de que o universo e a mente humana foram feitos um para o outro. Ele sugere que algumas coisas, como a própria capacidade racional, podem ser inexplicáveis no sentido de que participam de toda explicação possível. A razão, segundo ele, deve ser entendida como um sistema de pensamento impessoal e universal, permitindo aos indivíduos participarem da verdade objetiva.


5. Ciência 

Nagel argumenta que a razão não se limita à lógica e à matemática, mas se estende a domínios como ciência, história e ética. Enquanto o subjetivismo lógico é autocontraditório, a refutação do subjetivismo em outros campos depende da demonstração de que ele falha quando comparado às reivindicações racionais que busca contestar.

Embora a lógica e a matemática possuam um status de autoevidência inquestionável, outras formas de raciocínio operam com maior incerteza. No raciocínio empírico e ético, não temos provas absolutas, mas razões para acreditar em certas conclusões como mais prováveis ou justificadas. No entanto, mesmo nesses casos, acreditamos que há uma resposta objetiva a ser encontrada.

Nagel critica o subjetivismo e as tentativas de relativizar a ciência. Ele sustenta que a ciência busca a ordenação do mundo e que essa busca se justifica pelo seu sucesso em explicar fenômenos e prever novas observações. A ideia de um mundo ordenado não é uma mera projeção da mente humana, mas uma descoberta confirmada pelo progresso científico. Ele também rejeita a noção de que a exigência de ordenação seja subjetiva, argumentando que hipóteses científicas são testadas pela sua capacidade de explicar fenômenos de maneira sistemática e independente da perspectiva humana.

Além disso, Nagel refuta abordagens como o “realismo interno” de Hilary Putnam, que reduz a verdade à “aceitabilidade racional idealizada”. Para Nagel, essa visão falha porque não pode ser sustentada sem contradizer seu próprio método: a avaliação racional de hipóteses. Ele argumenta que a ciência não é um mero construto humano, mas uma tentativa genuína de entender a realidade objetiva.

Contra o idealismo transcendental de Kant, Nagel afirma que não podemos evitar pensar em nós mesmos como parte de um mundo objetivo. Ele rejeita a ideia de que a razão só se aplica ao mundo fenomênico e defende que o próprio raciocínio empírico fornece evidências contra essa limitação. Para ele, o idealismo kantiano é insustentável porque entra em conflito com a própria atividade racional, que inevitavelmente busca compreender o mundo como ele realmente é.

Nagel conclui que a razão humana é inescapável e que qualquer tentativa de reduzi-la a um ponto de vista subjetivo acaba se autodestruindo. Mesmo ao tentarmos relativizar ou reduzir a razão, somos forçados a utilizá-la, o que demonstra sua autoridade fundamental. Dessa forma, a razão deve ser vista como uma ferramenta objetiva para compreender a realidade, e não como um fenômeno contingente ou culturalmente limitado.


6. Ética 

Nagel investiga se o raciocínio moral é tão fundamental e inescapável quanto o raciocínio lógico e matemático. Ele reconhece que, ao contrário da lógica e da aritmética, o raciocínio moral frequentemente falha em produzir certeza e é mais suscetível a distorções sociais e pessoais. No entanto, defende que a objetividade moral não depende de um universo moral externo análogo ao mundo físico, mas sim da existência de razões universais que justificam ações e decisões.

O autor rejeita a ideia de que o pensamento moral seja apenas um produto da cultura ou da sociedade. Mesmo que valores como a igualdade de oportunidades tenham emergido em contextos específicos, sua validade não é reduzida a meras convenções culturais. O simples fato de que uma crença tenha origens contingentes não a torna subjetiva. A avaliação da moralidade exige reflexão crítica, e qualquer tentativa de relativizar valores universais deve ser submetida a um exame moral.

Nagel também argumenta que a moralidade envolve generalidade: o que é válido para um deve ser válido para todos nas mesmas circunstâncias. Ele refuta a visão humeana de que a razão é “escrava das paixões”, pois acredita que certos desejos podem ser motivados ou justificados racionalmente. A racionalidade prática, segundo ele, não apenas dita ações específicas, mas regula a relação entre desejos, ações e crenças.

O autor discute o conflito entre subjetivismo e objetivismo moral. O subjetivista precisa demonstrar que todos os julgamentos racionais sobre o que devemos fazer são meras expressões de desejos arbitrários, o que Nagel considera improvável. A razão moral resiste à redução psicológica porque, mesmo diante de explicações subjetivistas, ainda podemos questionar racionalmente o que devemos fazer.

Nagel também aborda a questão do livre-arbítrio e argumenta que a razão prática implica liberdade moral. Ao refletirmos sobre nossas escolhas, reconhecemos que estamos submetidos a padrões universais que transcendem nossas preferências individuais. Assim como a razão teórica busca a verdade, a razão prática busca a ação correta, conferindo uma dimensão objetiva à moralidade.

Finalmente, ele analisa diferentes concepções éticas, como o utilitarismo e o contratualismo, e defende que a moralidade exige consideração imparcial pelos interesses dos outros. Embora haja desacordo sobre como estruturar essa consideração, a busca por princípios morais universais resiste à relativização. No fim, a ética é parte da razão humana e só pode ser defendida em seus próprios termos, sem recorrer a metateorias que tentam relativizá-la.


7. Naturalismo evolucionista e medo da religião 

Nagel analisa o naturalismo evolucionista e sua relação com a razão e a ética, apontando como o medo da religião influencia a filosofia contemporânea. Ele começa discutindo Peirce, que, diferentemente do pragmatismo vulgar, via a ciência como uma busca contínua por verdades universais, não simplesmente como crença prática. Peirce defendia uma empatia natural entre a mente e a natureza, um pensamento que ressoa com um realismo platônico.

Nagel sugere que a ideia de que a mente humana pode captar a realidade de maneira profunda gera desconforto, pois parece apontar para uma ordem cósmica que não pode ser reduzida ao naturalismo materialista. Esse desconforto, que ele chama de medo da religião, não é apenas o receio de doutrinas religiosas, mas a recusa de qualquer estrutura última que sugira sentido e teleologia no universo.

Ele argumenta que esse medo leva ao reducionismo cientificista, exemplificado pelo uso excessivo da biologia evolucionista para explicar a mente humana. O darwinismo, ao eliminar propósito e desígnio, deu à cultura secular um “suspiro de alívio”, mas Nagel questiona se esse alívio não é um viés ideológico, mais do que uma conclusão racional. Ele admite sua própria aversão à ideia de Deus e sugere que o medo da religião pode estar por trás do impulso reducionista.

A crítica de Nagel ao naturalismo evolucionista se concentra no fato de que, se nossa razão é apenas um produto da evolução, então não há garantia de que ela seja confiável para descobrir verdades objetivas. Robert Nozick propõe que a evolução moldou a razão para nos fazer enxergar a realidade, mas Nagel aponta que isso não justifica a confiança na razão para além de sua utilidade adaptativa. Se a razão é apenas um subproduto da seleção natural, então sua validade como meio de conhecimento objetivo fica comprometida.

Quanto à ética, Nagel argumenta que uma explicação puramente evolucionista das nossas intuições morais não pode substituí-las. A visão evolucionista pode explicar por que sentimos certas coisas como certas ou erradas, mas não pode fornecer justificativas normativas. Se aceitamos que o racismo é errado, por exemplo, não é porque a seleção natural nos levou a pensar assim, mas porque há razões objetivas para rejeitá-lo.

No fim, Nagel rejeita tanto o reducionismo evolucionista quanto explicações religiosas tradicionais. Ele sugere que há algo na ordem natural que permite a emergência da racionalidade e da moralidade, mas sem exigir um Deus pessoal (aqui Nagel talvez tenha uma visão equivocada do que seja um “Deus pessoal”). A mente humana não pode ser completamente naturalizada, pois a própria tentativa de explicá-la já pressupõe o uso da razão. Ele conclui que, ao raciocinar, não estamos apenas criando regras arbitrárias, mas nos submetendo a uma ordem racional objetiva que transcende nossa biologia.


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