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Tomismo transcendental, Ser e graça

Joseph Maréchal, iniciador do “tomismo transcendental”

No tomismo transcendental, que é uma posição filosófica desenvolvida principalmente por Joseph Maréchal e outros pensadores que tentaram dialogar entre a metafísica tomista e a filosofia transcendental kantiana, temos:

 1. A Estrutura do Espírito e a Abertura ao Ser

No tomismo tradicional, seguindo Santo Tomás de Aquino, o intelecto humano é ordenado naturalmente para o ser, pois todo conhecimento começa na experiência dos entes sensíveis e se dirige ao ser enquanto tal. No entanto, o tomismo transcendental enfatiza que essa estrutura não é meramente empírica, mas uma exigência estrutural do próprio intelecto. Assim, cada ato de conhecimento já carrega uma abertura ao Ser em sentido absoluto. Em outras palavras, o nosso espírito é constitutivamente dirigido ao Ser, porque somente nele encontra sua realização última.

 2. Conhecimento Implícito do Ser e Tendência ao Bem

Como cada ente particular participa do Ser, cada conhecimento que adquirimos de um ente é, implicitamente, um conhecimento do Ser enquanto tal, ainda que de modo indireto e inadequado. Além disso, no tomismo, o Ser e o Bem são convertíveis (ens et bonum convertuntur), de modo que nossa vontade, ao desejar qualquer bem finito, na verdade deseja implicitamente o Bem Infinito. No tomismo transcendental, isso é lido como uma estrutura transcendente do espírito humano: toda atividade do intelecto e da vontade é, em última análise, um movimento para o Absoluto.

 3. A Impossibilidade de Alcançar o Ser por Nossas Próprias Forças

Aqui entra um ponto crucial: a distinção entre ordem natural e sobrenatural. Segundo a doutrina tomista tradicional, o intelecto humano pode chegar a conhecer a existência de Deus pela razão natural, mas não pode, por si só, alcançar a visão beatífica, que requer a graça sobrenatural. O tomismo transcendental reformula isso dizendo que o dinamismo do espírito humano em direção ao Ser absoluto é estrutural, mas encontra um limite na finitude do próprio sujeito. Assim, há um certo “horizonte infinito” no pensamento humano, uma tendência estrutural para o Ser Infinito que, no entanto, não pode ser plenamente satisfeito pelas capacidades naturais do intelecto e da vontade.

 4. A Necessidade da Graça para a União com o Ser

Se a estrutura do intelecto e da vontade humana implica essa abertura ao Ser absoluto, mas ao mesmo tempo não pode alcançar esse Fim por suas próprias forças, segue-se que é necessária uma intervenção do próprio Ser para que o intelecto e a vontade sejam plenamente realizados. Isso corresponde, na teologia tomista tradicional, à necessidade da graça para que o homem possa alcançar seu fim último na visão de Deus. No tomismo transcendental, essa necessidade da graça pode ser lida como a exigência interna do próprio dinamismo espiritual humano: a estrutura transcendente do espírito humano aponta para o Ser absoluto, mas não pode alcançar a plenitude desse Ser sem que o próprio Ser venha ao seu encontro.

Conclusão

O tomismo transcendental interpreta a relação do homem com Deus em termos de uma abertura estrutural ao Ser. O ser humano, ao conhecer e desejar, já está em relação implícita com o Absoluto, mas sua realização plena exige algo além de suas capacidades naturais: a graça do próprio Ser para nós. Isso mantém a doutrina tomista clássica da dependência da graça para a visão beatífica, mas a expressa em uma linguagem que enfatiza o caráter transcendental da estrutura cognitiva e volitiva do homem.

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