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Vocacionados à União

 «Foi bom para mim ser humilhado, para aprender teus estatutos» (Sl 119,71).

Como o homem, nascido nas baixezas da imperfeição e da ignorância, poderá alçar-se às alturas da sabedoria e da beatitude divina?

Não são somente as espiritualidades orientais, (como o hinduísmo ou o budismo) que falam da iluminação ou da mudança de consciência que não só nos liberta, mas nos introduz na plenitude divina ou na Vida da nossa vida. Para o cristianismo, a divinização é a grande vocação do homem. Divinizar-se é participar do que Deus é em si mesmo. É como que identificar-se com Deus. São João da Cruz usa expressões muito fortes; fala da transformação da alma em Deus e recorre à metáfora do fogo (Deus) que toca a madeira (homem) até que ela, não sem os ruídos que atestam sua transformação, expele toda a sua humidade e adquire cor enegrecida, para depois tornar-se quente e incandescente como o próprio fogo. A madeira como que se faz uma só coisa com o fogo.

Como receber a graça da divinização?

Ajudado pelos sacramentos, cada cristão terá o seu caminho próprio.

Alguns vão guiados por graça especial, por uma espécie de instinto concedido pelo Espírito Santo. Percebem logo o sentido absoluto da vida e instalam-se no centro da beatitude, não só de mente, mas também de coração.

A maioria, porém, certamente realiza a grande transformação só depois de ter passado por decepções, aflições, falências ou humilhações profundas e prolongadas. É que não é fácil extinguir as raízes mais profundas do orgulho, que se mascara frequentemente de bons comportamentos e até mesmo de piedade.

Como pode o homem deixar para trás a vida que vive do eu para viver a vida que vive da Vida? Derrubar o orgulho é, creio, a tarefa mais difícil que Deus pode realizar em nós. Por isso, o Doutor Místico fala da Noite horrenda por que passam as almas que Deus quer levar à perfeição, aquelas que, de algum modo, estão abertas à ação de Deus. O essencial da Noite não passa nem perto dos méritos e da importância humana do agraciado, chamado a iluminar-se e divinizar-se. Toda a questão gira em torno justamente de superar critérios e juízos humanos para entrar numa outra lógica – um outro Reino, que “não é deste mundo” (Jo 18,36) – que deixa definitivamente para trás os tamanhos, as larguras e os comprimentos pelos quais este mundo se pauta.

Falamos aqui de profunda, radical e extraordinária transformação. Isso pode assustar a muitos, que chegarão a pensar que este discurso está tão distante do homem comum e do cristianismo do dia a dia, que não passa de um conjunto de palavras vazias ou de uma realidade distante reservada a poucos privilegiados.

No entanto, não é assim. A mística, experiência real de tantos e tantas ao longo da história, fala da tríplice via da purgação, da iluminação e da união. Sem a sacudida radical, não mudamos nossas formas habituais de ser e de pensar. Eis a necessidade da purificação ou purgação. Mas a purgação não é fim em si mesma. Tenho pena de quem acha que o cristianismo ama o sofrimento pelo sofrimento. As dores da forte sacudida, da Noite horrenda, tem em vista a iluminação, a metánoia, mudança de mentalidade ou conversão. Pela iluminação, vê-se, não só teórica, mas existencialmente, que a Vida é a única fonte da vida. Em toda vida que buscamos fora da Vida, acabamos por encontrar a caducidade, o tédio e a morte. A Vida, porém, é jovialidade eterna, paz infinita, alegria perfeita e felicidade completa. Na fase da união, a alma passa a viver com plena consciência da Vida que está nela. A Vida passa a ser seu próprio centro. Quase fusão. A madeira se torna quente e incandescente como o próprio fogo. O fogo da madeira vem do fogo originário e é como o fogo originário.

Nada disso requer técnicas ou saberes esotéricos e iniciáticos. Nada disto é reservado apenas para uma elite espiritual que tem acesso a coisas que outros não podem ter. Na verdade, a união é o fim desejado por Deus mesmo para toda alma humana, que é como a esposa que o Esposo quer desposar efetivamente. A lógica aqui é a da graça e da simplicidade. Esqueça-se a lógica mundana. Aqui o estado é o da beatitude inefável. Nenhuma felicidade mundana poderá jamais atingir esse nível. Quem chegou a esse estado de união ainda neste mundo, venceu todos os temores e vive da Vida da qual jorra constantemente a paz. Não que não haja mais problemas, mas eles serão vistos e vividos de modo distinto. A forma que chegou a parecer uma ameaçadora cobra, passa a ser vista como sendo um mero pedaço de corda. Na saúde ou na doença, na prosperidade ou na dificuldade, o místico sabe e experimenta que está absorto na Vida.

A mística, cujos traços aqui apareceram em parte, se bem entendida, não é dualista nem niilista, não despreza o mundo nem desconsidera a nossa realidade encarnada, temporal e histórica. Deve-se afirmar que o rio da mística não pode vir do mundo. Vem da Fonte ou da Vida que está para além do tempo e da história. No entanto, quando esse rio nos atinge e nos trasforma, adquirimos luz e graça para ver e experimentar o mundo de modo diferente. Queremos a Fonte, e só ela nos pode satisfazer. Só ela é Vida. Mas quanto mais dela recebemos, mais vida criamos e nós e ao redor de nós, o que, sem negá-la, transfigura a nossa vida no tempo e na história. A vida no mundo é assumida e, desde as alturas da iluminação e da união, é enriquecida, não negada. Mística de olhos abertos!

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