O ego não é eliminado, mas a pessoa deixa de identificar-se com o seu reduzido horizonte. Tudo o que o ego pensa, projeta, sente ou deseja no seu horizonte próprio, que é o horizonte espácio-temporal, é finito e caduco. O espaço não pode apresentar-nos um bem infinito nem o tempo um bem eterno. Finitude e caducidade são próprias do horizonte espácio-temporal. Quando o ego se move nesse horizonte sente-se à vontade, mas, ao fim e ao cabo, fica sempre desiludido e cheio de apreensões e tristezas. Ele não pode ter firme em suas mãos os bens que procura, porque são bens fugazes que o tempo destrói, nem encontra bem algum que o satisfaça, porque são bens finitos delimitados pelo espaço.
O ego deve deixar-se superar pelo movimento da alma que ultrapassa o horizonte espácio-temporal. Wittgenstein já dizia que o sentido do tempo e do espaço está fora do tempo e do espaço. O eu mais profundo da alma (o Si mesmo) está ligado ao Eterno e o deseja, ainda que seja um desejo não refletido. O Si mesmo supera o ego deixando de identificar-se com ele e com seu horizonte próprio. São João da Cruz usa o verbo “querer” para falar desta desidentificação. “Se quiseres possuir Tudo, não queiras possuir nada”. Trata-se de soltar ou libertar-se da vontade ligada ao ego e de deixá-la mover-se pela graça que nela opera o desejo do Eterno. Trata-se de efetivar a vontade livre do horizonte espácio-temporal e orientata conscientemente ao Eterno. Não se trata de não possuir nada neste mundo — o que seria impossível —, mas de não identificar-se com essas posses. A alma unida ao Eterno é infinitamente mais do que qualquer posse dentro do espaço e do tempo, inclusive a posse de pensamentos, sentimentos, memórias e projetos, passado e futuro... Tudo é relativizado e perde a sua importância decisiva diante do Eterno.
Mas como libertar a vontade? Como superar o ego? Cada um terá seu caminho. São João da Cruz fala de “noites escuras”, umas em que o homem participa mais, outras em que o homem participa menos. As primeiras são as noites ativas (dos sentidos e do espírito). As segundas são as noites passivas (também dos sentidos e do espírito). A noite mais terrível, mais densa e mais proveitosa é a noite passiva do espírito. É passiva porque o homem quase não age. Ele a sofre. Essa noite o faz perder todas as suas seguranças, demasiadamente humanas, inclusive as seguranças religiosas. Quantas vezes não criamos um “Deus” à nossa imagem e semelhança, não é mesmo? Quantas vezes satisfazemos o nosso ego com esse “Deus” à nossa medida? Mas é justamente quando a noite age sobre as falsas seguranças religiosas que o homem cria, que ela se faz mais dolorida. Isso porque a noite passiva do espírito atinge as pessoas que já tinham se decidido totalmente por Deus. Deus já era tudo pra elas. Mas era preciso que esse “Deus” imaginado e pensado segundo medidas humanas se desmontasse para dar lugar a uma imagem menos inadequada de Deus. O “Deus” imaginado e pensado humanamente deve ceder lugar ao Deus divino. São João da Cruz descreve este processo como dolorosíssimo.
Passada a noite, surge a aurora! A alma, liberta da identificação com o ego e seu restrito horizonte, está já solta e pode unir-se livremente ao Absoluto. São João da Cruz descreve esta união como matrimônio místico. Nada mais a pode perturbar. A alma, enfim, encontrou o bem que não é finito nem caduca. É o bem eterno que nunca passa, aconteça o que acontecer. Porque não está mais identificada com o ego, não importa à alma se está na saúde ou na doença, se tem uma boa profissão ou não, se ocupa cargos importantes ou não, se lhe são concedidas glórias e reconhecimentos humanos ou se isso lhe é negado… Qualquer sucesso ou insucesso no horizonte espácio-temporal é por demais relativo e até irrelevante. A alma já vive a vida do Absoluto e frui da sua constante presença. Ela sabe que está enraizada n’Ele para sempre. E a vida do Absoluto é paz perpétua, felicidade sem fim. É a autopresença d’Aquele que é! A alma participa de tudo o que o Absoluto é! Na linguagem de São João da Cruz, a esposa (a alma) se transforma no Amado (o Absoluto).
As dificuldades desta vida não cessam para a alma que venceu o ego, mas, justamente porque venceu o ego, a alma não se sente perturbada como antes pelas vicissitudes do horizonte espácio-temporal. Ela vive já num nível que transcende esse horizonte.
Tudo isso não leva a alma necessariamente a fugir do mundo. Ao contrário, com mais leveza dentro de si, com a presença do Eterno em seu centro, a alma se torna mais livre para doar-se em favor das boas causas deste mundo! Torna-se livre para amar! Não foram os grandes místicos, a começar por Jesus, cuja vida era uma coisa só com o Pai, os que mais derramaram óleo sobre as feridas do mundo?
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