Pular para o conteúdo principal

E o retrato de Jesus?

Dom Estêvão Bettencourt, OSB

Em síntese: Não é possível reconstituir o retrato físico de Jesus, visto que faltam dados precisos a respeito nos Evangelhos. Os antigos cristãos estavam muito mais interessados na figura de Jesus glorioso e ressuscitado do que em sua fisionomia mortal. A Tradição afirmou ora que Jesus foi muito feio, ora que foi o mais belo dos filhos dos homens, tentando valer-se de textos bíblicos. Nada disto, porém, tem fundamento. — Pode-se assegurar que, em virtude do mistério da Encarnação, Jesus devia adotar os costumes honestos dos homens do seu tempo: usava barba, cabeleira longa cortada atrás, túnica, cinto, manto, sudário para cobrir a cabeça e o pescoço frente ao sol da Palestina. Devia gozar de saúde física e psíquica vigorosa e resistente, pois viveu muito pobre e se entregou a duras tarefas sem ter, muitas vezes, onde comer e dormir; chegaram os seus parentes a tê-lo como louco, não porque fosse deficiente, mas porque se entregava, sem se poupar, às lides apostólicas. Somente um homem forte, de estatura robusta e grande equilíbrio psíquico, poderia agüentar o que o Evangelho atribui a Jesus.

É muito freqüente procurar-se reconstituir hoje os costumes vigentes no tempo de Jesus; as descobertas literárias e arqueológicas provocam essa válida curiosidade. Especialmente a fisionomia humana de Jesus é objeto de indagações. Qual terá sido o tipo de Jesus homem: alto, forte, cabelos compridos e barba longa?. . . É o que insinua a imagem do Sudário de Turim, cuja atualidade e importância permanecem aceitáveis até hoje.

Há, porém, quem se apóie em outros dados para reconstituir o semblante de Jesus. Dizem, por exemplo, que não devia usar cabelos compridos porque era costume dos gregos e dos romanos o corte curto dos cabelos para os homens; o Talmud dos judeus, por sua vez, prescreve que os sacerdotes vão ao cabeleireiro uma vez por mês para o corte dos cabelos; daí se deduziria que também os rabinos ou mestres judeus estavam sujeitos a esta lei.
Em vista destes dados nem sempre coerentes entre si, pergunta-se: que há de certo sobre a identidade física de Jesus?

1. Os elementos do Evangelho e da Tradição

A partir dos Evangelhos, pode-se compor a seguinte ficha de identidade de Jesus:

1. Nome: Jesus, em hebraico Jeshu'a, abreviação de Jehoshu'a,

2. Pai oficial: José, em hebraico Josef. Por isto, o cognome de Jesus seria, segundo o estilo semita: ben Josef, filho de José; ver Lc 4,22;

3. Mãe: Maria, em hebraico Myriam;

4. Lugar de nascimento: Belém da Judéia;

5. Data do nascimento: "Nos tempos do rei Herodes" (Mt 2,1); por ocasião do "primeiro recenseamento de Quirino, Governador da Síria" (Lc2,1s);

6. Residência: Nazaré da Galiléia (e, depois, Cafarnaum);

7. Estado civil: celibatário;

8. Profissão: carpinteiro (e, depois, rabino);

9. Sinais particulares: nenhum.

Sobre este último ponto os Evangelhos não nos dão informação alguma.
Há quem imagine que Jesus era de baixa estatura por causa do texto de Lc 19,2s:

"Um homem chamado Zaqueu, rico e chefe dos publicanos, procurava ver quem era Jesus, mas não o conseguia por causa da multidão, pois era de baixa estatura".

Geralmente se entende que "de baixa estatura" era Zaqueu, e não Jesus.

Nos primeiros decênios os Apóstolos e discípulos não se preocuparam com o retrato físico de Jesus, pois a figura gloriosa do Ressuscitado lhes interessava mais. Por isto nem nos Evangelhos nem nas cartas de São Paulo há a descrição do físico de Jesus.

Foi somente nos séculos II/III que os escritores cristãos se voltaram para esse aspecto do Senhor. São Justino (+165), Clemente de Alexandria (+215) e Orígenes (+253) — respondendo aos comentários mordazes do filósofo pagão Celso — fazem de Jesus um homem feio ou até deformado, baseando-se na profecia de Isaías, que apresenta o Servo de Javé padecente como alguém que "não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar" (Is 53,2). Tal opinião podia encontrar apoio também na concepção platônica, que via no corpo o cárcere da alma ou algo de indigno do homem; se um corpo bem constituído era obra do demônio tentador, Jesus devia ter uma fisionomia corporal pouco atraente.

No século IV, porém, a literatura cristã reagiu contra essa imagem. Influenciada pelo esteticismo greco-romano, apresentou Jesus como homem fascinante; corroborava esta afirmação apelando para o SI 44,3, que celebra o Rei messiânico por ocasião de suas núpcias: "Tu és o mais belo dos filhos dos homens". — Todavia também esta fundamentação é fraca; não se pode, portanto, asseverar que Jesus tenha sido extremamente belo ou extremamente feio em seu porte físico.

Na Idade Média propagou-se com grande êxito uma carta atribuída a um procônsul romano chamado Lêntulo (sabe-se que na verdade existiu um Gneo Cornélio Lêntulo, que foi cônsul em 18a.C.e em 11 d.C., mas nunca esteve na Palestina). Eis os dizeres desse texto:

"Jesus é homem de estatura elevada e bem proporcionada, de olhar tendente à severidade. Todos os que o consideram, podem amá-lo e temê-lo. Os seus cabelos têm a cor das nozes de Sorrento muito maduras e descem lisos quase até as orelhas; das orelhas para baixo são crespos e formam cachos um pouco mais c/aros e brilhantes; caem ondulados sobre os ombros. A cabeleira está dividida ao meio, segundo o costume dos nazarenos. A sua fronte é lisa e muito serena; o semblante não traz nem rugas nem manchas e é embelezado por um colorido róseo. O nariz e a boca são regulares e perfeitos. Tem barba densa, da mesma cor que os cabelos; não é longa e parte-se na altura do queixo. O seu aspecto é simples e maduro. Os seus olhos são azuis, vivazes e brilhantes. . . A estatura do corpo é alta e reta, as mãos e os braços são graciosos ao olhar. Fala pouco, séria e comedidamente..."

Ora este "retrato" de Jesus não parece anterior aos séculos XIII/XIV.— Já em 1450 o famoso humanista Lourenço Valla o tinha na conta de falso. Não se pode dar crédito a essa imagem tardia e certamente espúria.

Procuremos, pois, desenvolver os traços certeiros da fisionomia de Jesus fornecidos pelos Evangelhos.

2. Tentando uma aproximação

Os textos do Evangelho dão a impressão de que o aspecto físico de Jesus devia ser agradável e atraente. É o que se depreende do impacto que Ele causava às multidões e também aos enfermos, aos pecadores e às pecadores (cf. Mc 1,27.37.45; Lc 7,16s...). Esse impacto era devido não somente ao vigor espiritual e religioso de Jesus, mas também à graça de seu semblante e do seu porte. Principalmente o olhar de Jesus devia sacudir, censurar, inflamar, como se deduz da locução familiar a São Marcos: "Ele, olhando em torno de si, disse..." (cf. Mc 3,5.34; 5,32; 10,23; 11,11).

Além disto, pode-se dizer que Jesus gozou de boa saúde física; era apto ao trabalho árduo e mostrava-se resistente à fadiga. Iniciava o dia bem cedo, como atestam os evangelistas:

"E pela manhã, muito cedo, levantou-se e foi a um lugar deserto para orar" (Mc 1,35).

"Ao romper da aurora, chamou os seus discípulos e escolheu doze dentre eles" (Lc6,13).

Jesus se dava bem ao contato com a natureza. Gostava do lago e das colinas da Galiléia. Aliás, toda a sua vida pública foi um ir-e-vir contínuo pelas serras e planícies da sua terra. Caminhava com o mínimo de apetrechos ou subsídios, como Ele recomendava aos discípulos: "Nada leveis convosco para o caminho, nem bastão, nem bolsa, nem pão nem dinheiro" (Lc 9,3). Muitas vezes terá experimentado a fome e a sede. Ele, aliás, podia dizer: "As raposas têm tocas, e as aves do céu ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça" (Mt 8,20). Quando penetrava numa casa, era hóspede ou peregrino, porque não tinha nem casa nem onde repousar a cabeça. Pode-se crer que tenha passado muitas noites ao relento.

Diz ainda São Marcos que a atividade apostólica de Jesus era tão intensa que por vezes não tinha tempo nem para comer e, por isto (porque muito dedicado ao trabalho), passava por louco; cf. Mc 3,20; 6,31. Até horas tardias da noite os doentes o procuravam; cf. Mc 3,7.

Nunca se lê que Jesus tenha perdido a calma, nem mesmo nas ocasiões mais excitantes. Certa vez, durante forte tempestade no lago de Genesaré foi encontrado pelos discípulos a dormir tranqüilamente sobre um travesseiro. Despertado pelos Apóstolos, não se perturbou, mas com toda a presença de espírito dominou a tormenta (cf. Mc 4,38s).

O conjunto destes fatos mostra claramente que Jesus gozava de pleno equilíbrio psíquico e físico ou de saúde perfeita e vigorosa.

O mistério da Encarnação leva-nos a crer que Jesus seguia os costumes honestos de seus contemporâneos: barba longa, usual entre os judeus; cabelo pendente e cortado atrás, à diferença dos nazarenos, que nunca o cortavam (cf. Nm 6,5). São Paulo, aliás, nos diz que para o varão é desonra "deixar crescer a cabeleira" (cf. 1Cor 11,14). Vestia uma túnica de lã, um cinto que trazia eventualmente a bolsa do dinheiro (cf. Mt 10,9), um manto (cf. Lc 6,29) e sandálias (cf. At 12,8). O relato da Paixão diz que a túnica de Jesus era "inconsútil, tecida de uma só peça" (cf. Jo 19,23). Um sudário branco, que cobria a cabeça e o pescoço, devia protegê-lo contra as intempéries do sol nas suas longas caminhadas; Pedro havia de encontrar dobrado no sepulcro esse sudário; cf. Jo 20,7. Jesus, porém, desprezava toda preocupação excessiva com o seu modo de vestir-se (cf. Mt 6,28).

Eis o que se pode dizer de mais seguro sobre o aspecto físico ou o retrato humano de Jesus. O cristão sabe que mais importante do que essa fisionomia exterior é a face interior e íntima do Senhor Jesus, que a fé — e somente a fé — é capaz de conhecer e experimentar.

Ver a respeito Karl Adam Jesus Cristo. Ed. Quadrante, Rua Iperoig 604, 05016 São Paulo (SP).

PERGUNTE E RESPONDEREMOS 347 – abril 1991

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Adorar a Trindade: contemplação teológica segundo o "Compendium Theologiae" de Santo Tomás de Aquino

“Credo in Deum Patrem omnipotentem… et in Iesum Christum… et in Spiritum Sanctum” ( Symbolum Fidei) ⸻ I. Deus: Mistério abissal de Ser, Luz e Amor Antes de tudo, somos conduzidos ao silêncio adorante diante de Deus, cuja essência é ato puríssimo, sem qualquer mistura de potência ou composição. “Deus est actus purus absque potentialitatis permixtione” ( Compendium theologiae , c. 28). Ele é a fonte e plenitude de todas as perfeições. E a mais alta dessas perfeições, segundo Tomás, é o inteligir: “Intelligere praecellere videtur, cum res intellectuales sint omnibus aliis potiores” (ibid.). Deus é, pois, luz infinita, inteligência plena. Mas este inteligir não é acidental, nem sucessivo, nem discursivo: é eterno, simultâneo, simples e perfeitíssimo. “Intelligentia Dei absque omni successione est” (c. 29), e seu modo de conhecer é por sua própria essência: “Non per aliam speciem, sed per essentiam suam intelligit” (c. 30). Deus é sua inteligência, e seu inteligir é sua própria vida: “Ipse ...

Missas da Novena de Santo Antônio em Ewbank da Câmara

As Missas com a Novena de Santo Antônio de Ewbank da Câmara (MG) começam no dia 4 de junho (sábado), às 19h, na matriz de Santo Antônio. Publicamos, dia por dia, para as equipes de liturgia e o povo em geral, os textos do comentário, as preces e o fato da vida de Santo Antônio com a respectiva oração do dia da novena. MISSA DO 1° DIA DA NOVENA - 4 de junho às 19h COMENTÁRIO INICIAL Com.: Com alegria, acolhemos a todos para esta Santa Missa, na qual celebramos o mistério da Ascensão do Senhor. Ao subir aos céus, Jesus nos mostra que estamos a caminho da casa do Pai. Não temos aqui morada permanente. Mas é certo que devemos viver bem aqui neste mundo, fazendo a vontade de Deus, para passarmos para a Casa do Pai com paz e tranquilidade. Hoje, celebramos também o 1° dia da novena de nosso padroeiro Santo Antônio, cujo tema é a “Vocação de Antônio”. Foi porque ele ouviu a voz de Deus em sua vida que se tornou santo, seguindo os passos de Jesus até o céu. Cantemos para acolher o celeb...

Deus como “Esse Subsistens”: um “conceito saturado” para a razão

Na filosofia de Santo Tomás de Aquino, uma das expressões mais densas e provocadoras do mistério divino é aquela que designa Deus como ipsum esse subsistens — o próprio Ser subsistente . Esta fórmula, que representa o cume do pensamento metafísico, não pretende, contudo, oferecer uma definição de Deus no sentido estrito e exaustivo. Antes, ela marca o limite e a elevação máxima a que a razão pode chegar no exercício de sua abertura ao ser. Com efeito, o ser ( esse ) é aquilo que primeiro se apreende pelo intelecto; é o ato mais íntimo e profundo de tudo o que é. Apreendemos o ser presente nos entes antes de reconhecermos o Ser puro subsistente como seu fundamento absoluto.  Ora, ao afirmar que Deus é o Ser subsistente, Santo Tomás quer dizer que em Deus não há distinção entre essência e ato de ser pleno, entre o que Ele é e a sua existência necessária. Ele é o próprio Ser — não como um ser entre outros, nem como um gênero supremo, mas como o Ato puro de ser, sem nenhuma composição...