Pular para o conteúdo principal

A verdadeira luta hoje travada

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

O filósofo Karl Jaspers identificou na Antiguidade o que ele chamou de “tempo-eixo”, um período de tempo entre 800 e 200 a.C., que, da Grécia até o Extremo Oriente, foi capaz de forjar o destino da história subsequente. O que caracterizou esse fecundo período, na verdade, foi a tomada de consciência de que o sentido do mundo não se encerra no próprio mundo. Rompendo com visões rigidamente cosmocêntricas, grandes individualidades na Grécia (os filósofos), em Israel (os profetas), na China e na Índia apontaram para uma Realidade metacósmica e nela viram o fundamento do mundo e do homem.

Notadamente, o globo simbólico de nossa civilização ocidental foi constituído pelo encontro de duas experiências nascidas no tempo-eixo, a saber, a experiência da Revelação em Israel e a experiência da Ideia na Grécia. Em ambas as experiências, o homem e o mundo eram remetidos a um fundamento transcendente, que não estava simplesmente ao dispor das arbitrariedades e decisões humanas. No caso de Israel, a experiência do fundamento transcendente se realizou como acolhimento na fé de Deus que se dirige ao homem (movimento de descida); já no caso da Grécia, a experiência se perfaz no movimento de subida, em que se procura alcançar a razão última do mundo e do homem num supremo esforço de exercício filosófico. Num caso como no outro, o fundamento metacósmico é reconhecido como estando muito além da razão finita do homem – supra intellectum -, o que deu origem ao tema do “Deus inapreensível”, estudado pela teologia e pela filosofia.

 Foi a partir do século II de nossa era que a experiência de Israel, já tornada Cristianismo, e a experiência grega se encontraram e mutuamente se fecundaram para abrir, assim, o globo simbólico de nossa civilização ocidental. Desde então, temos vivido sob o signo do fundamento transcendente (Deus, o Absoluto). Acontece, porém, que a modernidade dita pós-cristã tem pretendido fundar um novo tempo-eixo, em contraposição ao primeiro. Um tempo em que a referência ao fundamento transcendente fosse banida de vez. A própria filosofia em geral, esquecendo-se de sua vocação originária, tem procurado transferir para a imanência a fonte de todo sentido que o homem possa ver nas coisas. Deixando de lado o Absoluto transcendente, o establishment cultural dito pós-cristão coloca a fonte de sentido no sujeito,  na natureza, na história, na cultura, na linguagem... Num périplo que parece interminável.

A luta que então se trava é a luta entre uma civilização que tem no transcendente sua medida, de um lado, e, de outro, uma civilização que procura a todo custo imanentizar toda medida, critério ou sentido. Todos os outros embates culturais derivam, de certa maneira, dessa luta fundamental. Mas um novo tempo-eixo que deixe de lado a Transcendência real estaria conforme à dignidade espiritual do homem? Não privaria o homem de sua mais alta expressão, qual seja, a busca do Absoluto?

Comentários

  1. Com certeza o mundo "moderno" tem procurado fundar novas concepções explicativas para a existência. Isto é lastimável, partindo do princípio que a Igreja fundada por Deus na Terra tem as chaves do Céu e da Terra. Muitos "dentro"

    ResponderExcluir
  2. A modernidade é antropocêntrica e criou um deus a sua imagem e semelhança. Por isso que hoje mais do que nunca, tudo se tornou transitório mediocre artificial "use e jogue fora" .

    Eu estou convencido de que não existe nada mais importante do que a liturgia da santa missa e digo a Tridentina pois será ela a grande responsável por fazer a Igreja centralizar-se novamente em Deus e colocar as coisas nos eixos .

    A humanidade virou as costas para Deus , assim como a Missa de Bugnini .
    Por isso é urgente que se conheça a riqueza teológica que se encerra nesta Missa pois foi esquecida. A missa não é festa nem show nem ceia de irmãos e sim a renovação incruenta do santíssimo sacrificio de Nosso Senhor no calvário.

    Nosso Senhor é o centro do Universo e todos devem estar diante dele , de frente para ele na MIssa isso é muito profundo ! O centro do universo, digo nosso centro nossa alma, a alma do cristão é o Santíssimo Sacramento da Missa.

    A consequência dessa terrível mudança teológica foi essa tragédia que vivemos hoje . O homem no lugar de Deus de costas para Deus.
    A mais terrível apostasia jamais vista dentro da Igreja e que começou do cume .

    A Santa Hóstia vista por São João Bosco no sonho e que salva a Igreja se torna mais clara agora em nosso tempo de grande crise de fé .
    Viva o Papa!!
    Viva Summorum Pontificum

    Sua benção Padre Elilio

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Primeira Via de Sato Tomás

A primeira via de São Tomás de Aquino para provar a existência de Deus é a chamada prova do motor imóvel, que parte do movimento observado no mundo para concluir a existência de um Primeiro Motor imóvel, identificado como Deus. Ela é formulada assim: 1. Há movimento no mundo. 2. Tudo o que se move é movido por outro. 3. Não se pode seguir ao infinito na série de motores (causas de movimento). 4. Logo, é necessário chegar a um Primeiro Motor imóvel, que move sem ser movido. 5. Esse Primeiro Motor é o que todos chamam de Deus. Essa prova se fundamenta em princípios metafísicos clássicos, especialmente da tradição aristotélica, como: • A distinção entre ato e potência. • O princípio de que o que está em potência só passa ao ato por algo que já está em ato. • A impossibilidade de regressão ao infinito em causas atuais e simultâneas. Agora, sobre a validade perene dessa via, podemos considerar a questão sob dois ângulos: 1. Validade ontológica e metafísica: sim, perene A estrutura m...

Bíblia: inspiração, pedagogia e revelação

Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes. A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspi...

Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir ( Ipsum Esse ), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma... Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingen...