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Pessoa, embrião e dignidade


Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Hoje, mais do que nunca, o direito positivo e as constituições dos diversos países colocam em evidência os direitos da pessoa humana. Nunca na história da humanidade se invocaram com tanta insistência os assim chamados  direitos humanos, o que é em si mesmo ótimo. 

A maioria, contudo, se esquece de que a carga semântica do conceito de pessoa, donde decorre toda a compreensão que se alcançou sobre a dignidade humana e os direitos, lança suas raízes no campo da teologia e encontra sua fundamentação no discurso metafísico ou teológico. Sem uma compreensão metafísica, o conceito de pessoa perde sua inteligibilidade e fundamentação. O que acontece hoje é que vivemos numa contradição: de um lado, os direitos pessoais são defendidos e colocados em evidência como nunca dantes; de outro lado, por vivermos numa cultura que se considera pós-metafísica e mesmo pós-teológica, a fundamentação da dignidade pessoal pende no ar, não encontrando um chão para se apoiar.

A noção de pessoa, com toda sua carga semêntica, só passou a designar a essência metafísica do indivíduo humano, entendido como subsistência espiritual, dotado de consciência e liberdade e aberto à totalidade do Ser, depois de ter sido empregada no campo da teologia. Foi nas controvérsias trinitárias e cristológicas dos séculos IV e V que o termo pessoa (persona, hypóstasis), deixando sua significação funcional de máscara ou papel desempenhado (no teatro ou na vida) ou sua significação meramente empírica (o termo chegou a ser empregado para designar o indivíduo empírico), passou a designar as relações subsistentes intratrinitárias e a desempenhar um papel fundamental no entendimento da encarnação do Filho de Deus. Persona, no seio da Trindade divina, designa uma relação subsistente, de tal modo que podemos dizer que pessoa é um ser que se define pela sua relação constitutiva com o outro. Deus é relação (subsistente): a pessoa do Pai é, eternamente, para o Filho, que, por sua vez, é para o Pai, e ambos são para o Espírito Santo, que, por sua vez, é para o Pai e o Filho. Pessoa é um ser para o outro, é um dom de si. A realidade mais real, ou seja, Deus, é de caráter pessoal. O conceito de pessoa não podia encerrar maior perfeição. Ele possui dignidade divina. Assim, Santo Tomás pôde dizer que "persona dicitur id quod est perfectissimum in tota natura" - "pessoa é dito do que há de mais perfeito na ordem do ser". Na cristologia, viu-se que a pessoa de Cristo distingue-se da natureza humana por ele assumida na unidade da sua pessoa divina. Isso abriu espaço para a compreensão de que a pessoa é o quem (não um mero que) que possui uma natureza, isto é, a pessoa só pode ser entendida como autopossessão, nunca como uma coisa possuída. 

De seu emprego na teologia, o conceito de pessoa passou a ser empregado analogicamente na antropologia: para designar o indivíduo humano em sua essência, que, justamente por sua natureza racional, é abertura para a totalidade do Ser. Essa antropologia personalista, que vigorou sob a influência benfazeja da teologia, constituiu, a nosso ver, um verdadeiro achado para a filosofia. Filosoficamente falando, a categoria de pessoa é adequada para designar o ser do indivíduo humano em sua irrepetibilidade e em sua relacionalidade e abertura universal. Aristóteles já tinha dito que "anima est quodammodo omnia" - "a alma (humana) é de certa maneira o universo inteiro".

As sociedades arcaicas e antigas absorviam os indivíduos no todo orgânico social, de modo que aí não havia viabilidade de afirmar com distinção a individualidade da pessoa, sua irrepetibilidade e dignidade nativa. O bem da sociedade era de tal modo visado que não havia possibilidade de ver com clareza que o bem da pessoa devia ser o fim da vida social. Uma preparação para a descoberta da pessoa humana foi sem dúvida a ocorrência do tempo-eixo, estudado com profundidade por Karl Jaspers. Esse evento de consequências imponderáveis para a humanidade, ocorrido entre o séc. VIII e II a.C. entre civilizações e povos da antiguidade como China, Índia, Israel e Grécia, representou a tomada de consciência muito clara por parte de grandes indivíduos de uma relação de transcendência, que remetia o homem e o mundo para o seu fundamento metacósmico. Foi exatamente aí que se destacaram grandes personalidades, como os profetas em Israel e os filósofos na Grécia. O tempo-eixo, ao destacar a atividade de grandes indivíduos em relação com o Transcendente, preparou o terreno para a compreensão do conceito da dignidade da pessoa. Ao se colocarem em relação especial com o fundamento metacósmico, grandes indivíduos mostraram que a vida social não é a última palavra sobre o homem, pois que o homem, sem a negar, supera a relação intersubjetiva e se coloca no horizonte da totalidade do Ser. Deram a ver, assim, que a individualidade irrepetível se forja sobretudo pela consciência da participação no Ser, o que traz implicações éticas e sociais de alcance às vezes revolucionário.

Pessoa, em sentido antropológico, é, pois, uma individualidade. Mas não uma individualidade fechada, o que seria pobreza. Pessoa é uma individualidade, e, enquanto tal, irrepetível, singular, incomunicável, aberta, porém, às relações, que lhe são constitutivas: a relação com o mundo, com os outros e com a Transcendência. Esta última relação é o que tem definido toda a grandeza e a dignidade inalienável da pessoa. A relação de transcendência ou a relação com Deus coloca a pessoa ligada a um fundamento absoluto e indisponível, e, por isso mesmo, confere a ela uma dignidade absoluta e inegociável, rompendo com todo relativismo que poderia submetê-la a interesses escusos ou fazer dela simples meio para fins. O homem se expressa a si mesmo na medida em que se efetivam as relações, de modo especial a relação de transcendência, e, assim, se forja a sua individualidade concreta ou existencial. E é na medida em que o homem se expressa que ele se mostra como pessoa.

A civilização ocidental assimilou bem, ao longo da história, a lição sobre a dignidade singular da pessoa. As reivindicações pelos direitos do homem; o rompimento com formas inadequadas de tratamento dos indivíduos, como a escravidão; a peleja pela igualdade de oportunidades e de vida digna para todos e para cada um; enfim, tudo o que coloca o homem enquanto indivíduo como portador de direitos inalienáveis deve ser visto como fruto de uma consciência que, desde os campos da teologia e da metafísica, expandiu-se para o direito, a política, as constituições, etc. Os nossos Estados ocidentais, mesmo que em sua maioria se professem laicos, beberam, ainda que inconscientemente, das fontes teológicas e metafísicas. A civilização ocidental aprendeu a ver na pessoa um fim em si mesmo, nunca simplesmente um meio. A dignidade pessoal é, pois, inviolável. 

A consciência e a liberdade, atributos pessoais, ao fazerem do homem um indivíduo capaz de acolher o Ser pela inteligência e consentir ao Ser pela liberdade, conferem-lhe graves direitos à autorrealização, bem como deveres não menos graves, uma vez que, pela liberdade, a pessoa é vocacionada a realizar-se. Desse modo, o mínimo que se espera de uma ética é a salvaguarda dos direitos pessoais e a garantia de que todos e cada um possam desenvolver-se, inclusive pelo exercício dos deveres.

Mas o que tudo isso tem que ver com nosso tema, que gira em torno da bioética e da consideração do embrião desde um ponto de vista filosófico? Em breves palavras, temos de dizer: tem tudo que ver! Ora, o embrião é um embrião humano e, por isso mesmo, ele está, de alguma maneira, irradiado de dignidade humana e, portanto, pessoal.

Senão vejamos. Dado que estamos convencidos da dignidade da pessoa humana, embora eu preferisse que o discurso propriamente metafísico estivesse mais presente para apontar como convém o fundamento da dignidade nativa da pessoa, o grande debate que se levanta é o de quando começa a vida humana e quando uma vida pode ser sujeito de direitos pessoais. Creio que esclarecido este ponto, tudo se torna mais fácil.

Na ciência há um grande debate sobre a questão. Mas uma coisa é certa: a partir da fecundação, tem início uma nova vida, que se encontra em potência para ulteriores desenvolvimentos e firmemente orientada para eles. Já não é nem a vida do espermatozoide nem a vida do óvulo. Estes, como tais, antes da fecundação, já tinham atingido o máximo de seu desenvolvimento. O espermatozoide sozinho não podia passar de um espermatozoide. O óvulo sozinho não podia passar de um óvulo. Entretanto, a partir da fecundação forma-se um novo genoma, de tal modo que, durante toda a gestação, nada mais é acrescentado, nada mais a nova vida recebe, senão os nutrientes de que precisa para continuar a viver e desenvolver-se. Com os nutrientes fornecidos pela mãe, ele desenvolve seus órgãos e aumenta seu tamanho.

Algumas posições gostariam que se pudesse falar de vida humana só a partir da nidação (a partir do 4º. dia após a fecundação), quando começam os movimentos celulares do embrião e a formação dos órgãos. Outras posições querem reconhecer a dignidade humana da nova vida quando o coração começa a bater, a partir da 4ª semana da fecundação. Outras posições ainda só veem dignidade humana na nova vida a partir da transição do estado de embrião para o estado de feto, quando se completa a generalidade dos órgãos e passa a ocorrer só o aumento do tamanho. A passagem para o estado de feto ocorre por volta de 8 semanas após a fecundação. Há também quem sustente que a vida propriamente humana existe só quando está formado o sistema nervoso central (ora, o sistema nervoso só completa seu pleno desenvolvimento na adolescência). Por fim, há cientistas que opinam que só quando aparece a autoconsciência a vida é propriamente humana, o que aconteceria por volta dos 18 meses após a fecundação. Mas, então, um indivíduo em coma não teria vida propriamente humana? Seria justificável, então, abortar a vida com 6, 7, 8 ou nove meses de gestação? Seria justificável considerar uma criança recém-nascida como uma vida não humana? E matá-la sem por isso cometer um homicídio?

O que essas variadas posições sobre quando começa a vida humana não parecem considerar é que, segundo dados seguros da ciência, desde a fecundação temos uma outra vida, que não é a vida do espermatozoide, não é a vida do óvulo, nem é a vida dos pais. A nova vida que começa com a fecundação representa um novo ciclo vital com uma identidade bem determinada e com uma orientação a um desenvolvimento bem definido. Identidade e orientação são as duas grandes características da nova vida. É o novo genoma que determina essa identidade e essa orientação, orientação que, coordenada e contínua, se não interrompida, vai culminar em uma vida carregada de expressões pessoais. As multiplicações celulares ocorridas nos primeiros dias após a fecundação não fazem da nova vida um amontoado de células, como por vezes se diz por aí, assim como muitos tijolos bem ordenados não são simplesmente um amontoado de tijolos, mas uma casa.

Desse modo, com os dados que temos da ciência, é forçoso reconhecer que o zigoto é o primórdio de um novo ciclo vital e, portanto, de uma nova vida humana. Isso foi abertamente reconhecido pelo Comitê Warnock com as seguintes expressões: “Uma vez que o processo começou, não há nenhuma parte do processo de desenvolvimento que seja mais importante que outra; todas são parte de um processo contínuo, e se cada etapa não acontece normalmente, no tempo justo e na correta sequência, o desenvolvimento ulterior cessa”.

Com essas considerações, o olhar filosófico não poderia deixar de ver no embrião humano brilhar o esplendor da dignidade humana ou da dignidade pessoal, da qual falamos. É certo que as controvérsias da ciência sobre quando começa a dignidade propriamente humana geram muitas vezes confusões e ambiguidades que, do ponto de vista meramente científico, talvez nunca sejam solucionadas. E não é tarefa da ciência determinar com a precisão de um relógio quando a nova vida passa a ser portadora da dignidade humana inviolável. O reconhecimento da dignidade humana não é uma questão simplesmente técnica ou relativa à precisão de um relógio. É preciso olhar a questão do ponto de vista filosófico e ético. Ora, desde este olhar, e com os dados que a ciência pode nos fornecer, é no mínimo temerário não considerar já o zigoto como portador de dignidade humana. A partir da fecundação, temos o início de um novo ciclo vital dotado de identidade bem definida e de orientação bem precisa, de tal modo que podemos dizer que a nova vida que se inicia nunca se tornaria humana se já não o fosse desde o início. É esse processo, como um todo, de geração e de desenvolvimento de uma nova vida humana, processo pelo qual cada um de nós foi gerado e se desenvolveu, que deve ser absolutamente respeitado como portador de uma dignidade verdadeiramente humana.

Falamos de dignidade da pessoa, inviolável. A pessoa é um fim em si mesmo, jamais um mero meio. E a pessoa é também expressividade. Contudo, deve-se reconhecer que o embrião não pode ainda se se expressar como pessoa. Mas nem a criança antes do uso da razão o pode plenamente. Deve-se dizer que ter dignidade pessoal e poder expressar-se como pessoa por atos de inteligência, vontade e relações não são a mesma coisa. Pode ser que uma vida tenha a dignidade pessoal, como dificilmente a negaríamos para uma criança antes do uso da razão ou para um enfermo em coma, sem poder expressar-se por atos pessoais. Devemos dizer que para ter dignidade pessoal, basta que uma vida seja vida da espécie humana, pois que todo indivíduo vivo humano tem as estruturas da pessoa, ainda que não possa expressar-se como tal. O embrião humano, pois, tem dignidade pessoal, ainda que não possa se expressar com atos pessoais. E, por causa de sua dignidade pessoal inalienável, deve ser absolutamente respeitado, já que absoluto é o valor da pessoa.

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