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De rationibus fidei (Santo Tomás de Aquino) - Cap. VI

Capítulo VI

Como se deve entender a afirmação de que Deus se fez homem:

Quando afirmamos que Deus se fez homem, ninguém pense que isso queira dizer que Deus se tenha convertido em homem, assim como o ar se faz fogo quando em fogo se converte. Ora, a natureza de Deus é imutável. Os corpos é que se convertem um no outro. A natureza espiritual não se converte em natureza corpórea, mas pode unir-se-lhe de algum modo pela eficácia de seu poder, como a alma se une ao corpo. Embora a natureza humana conste de alma e corpo, a alma, contudo, não é de natureza corpórea, mas espiritual.

Ora, toda criatura espiritual dista da simplicidade divina muito mais do que dista a criatura corporal da natureza espiritual. Assim como a natureza espiritual une-se à corporal pela eficácia de seu poder, de modo semelhante Deus pode-se unir tanto à natureza espiritual quanto à corporal, e segundo tal modo afirmamos que Deus uniu-se à natureza humana.

Deve-se observar que é sobretudo o elemento principal de qualquer coisa que seja que determina o que ela parece ser. Todos os outros elementos parecem aderir àquele que é o principal e, de certo modo, ser assumidos por ele, na medida em que o principal se vale dos outros segundo sua disposição, o que é manifesto em uma comunidade civil, em que os maiorais parecem constituir toda a cidade e dispõem dos outros segundo sua disposição na qualidade de membros seus. Tal se dá também na união natural. Embora o homem conste naturalmente de alma e corpo, ele parece ser principalmente alma, à qual o corpo está unido, corpo de que dispõe a alma para as operações convenientes. Assim, na união de Deus à criatura, a natureza divina não é subtraída pela natureza humana, mas, antes, a natureza humana é assumida por Deus, não de modo que se converta em Deus, mas que a ele se una (adhaereat), e a alma e o corpo assim assumidos sejam, de certo modo, a alma e o corpo do próprio Deus, assim como as partes do corpo assumidas pela alma são, de certo modo, membros da própria alma.
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Há nisso, porém, uma diferença a ser notada. Embora a alma seja mais perfeita do que o corpo, não possui em si mesma toda a perfeição da natureza humana; donde o corpo sobrevir a ela para que da alma e do corpo se complete uma só natureza humana, da qual a alma e o corpo são certas partes. Deus, ao contrário, é tão perfeito em sua natureza que nada pode ser acrescentado à sua plenitude; donde não poder a natureza divina unir-se a algo de modo a formar a partir dessa união uma natureza comum, pois, assim, a natureza divina seria parte daquela natureza comum. Ora, isso repugna à perfeição da divina natureza, já que toda parte é imperfeita. Deus, isto é, o Verbo de Deus assumiu a natureza humana composta de alma e de corpo modo que não houvesse a transformação de uma natureza em outra nem fusão de duas naturezas em uma só, mas de modo que, depois da união, permanecessem as duas naturezas distintas quanto às suas propriedades. É preciso considerar ainda que, uma vez que a natureza espiritual se une à natureza corpórea pelo poder espiritual, tanto mais perfeita e firmemente a natureza espiritual assumirá a que lhe é inferior quanto maior for o seu poder. Ora, o poder (virtus) de Deus é infinito, e toda criatura lhe é submissa, ele que dispõe de cada qual conforme lhe apraz, o que não seria possível a não ser que, de algum modo, estivesse unido à criatura pela eficácia de seu poder. E tanto mais perfeitamente está unido a uma natureza criada quanto mais exerce sobre ela o seu poder. Deus, na verdade, exerce seu poder sobre todas as criaturas, comunicando-lhes o ser e o movimento para que realizem suas operações próprias; por isso, dizemos que ele está em todas as coisas de algum modo. Mas de modo especial está na mentes santas, não somente conservando-lhes o ser e dando-lhes o movimento para operar, como acontece com as demais criaturas, mas também convertendo-as para o conhecimento e o amor de Deus. Daí dizermos que Deus habita especialmente nas mentes santas, e que estas estão cheias de Deus.

Assim, uma vez que se diz que Deus está mais ou menos unido às criaturas em proporção da quantidade de poder que ele exerce sobre elas, é manifesto que, não podendo o intelecto humano compreender a eficácia do poder divino, Deus pode muito bem unir-se à criatura de um modo superior ao que o intelecto humano possa captar. É, então, segundo um modo incompreensível e admirável que dizemos que Deus se uniu à natureza humana em Cristo, não só por in-habitação como nos outros santos, mas de um modo singular, de tal maneira que a natureza humana fosse, de algum modo, a natureza do Filho de Deus, e o Filho de Deus, que desde toda a eternidade possui a natureza divina do Pai, tivesse uma natureza humana do nosso gênero, assumida admiravelmente no tempo. Assim, quaisquer partes da natureza humana podem ser ditas do próprio Filho de Deus, e o que faz ou sofre qualquer parte da natureza humana pode ser atribuído ao unigênito Verbo de Deus. Donde dizermos, não inconvenientemente, que a alma e o corpo são do Filho de Deus, e também os olhos e as mãos; e, nesse sentido, dizemos que o Filho de Deus viu com os olhos do corpo (corporaliter) e ouviu com os ouvidos corpóreos, e do mesmo modo afirmamos a respeito de outras coisas, quer sejam partes da alma ou do corpo. O capítulo VI continua...

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