Pular para o conteúdo principal

Para esclarecer o conceito de “Padre da Igreja”

 


Quem é Padre da Igreja? 

Ratzinger procura responder através de uma reflexão interessante, que procuro expor abaixo: 


A condição “paterna” e a audição da Palavra

Para Joseph Ratzinger, seguindo a linha de Jean Daniélou e Michel Benoît, a figura do Padre da Igreja não se define por critérios externos ou sociológicos, mas por uma realidade teológica: o ser “pai” na fé da Igreja. Isso implica ser parte constitutiva do momento em que a Palavra revelada foi ouvida, discernida e configurada na vida da Igreja.

A revelação cristã, diz Ratzinger, é uma palavra, mas a palavra só é verdadeiramente palavra quando é ouvida — quando encontra um sujeito que a acolhe, interpreta e a faz viver. Assim, não basta que Deus fale; é necessário que o povo de Deus escute. O tempo dos Padres é o tempo dessa escuta inaugural e configuradora.

Essa audição não é apenas uma recepção passiva, mas um evento teológico: a Palavra se manifesta na medida em que é acolhida. Por isso, a Igreja primitiva não foi simplesmente depositária de um conteúdo já pronto, mas participou ativamente na constituição da forma histórica e doutrinal da fé cristã. A teologia patrística é, nesse sentido, o eco criador da Palavra divina na consciência eclesial.


Os quatro momentos da audição da Palavra

Ratzinger identifica quatro momentos decisivos dessa audição constitutiva:

 1. O cânon das Escrituras.

A Igreja discerniu, num longo processo, quais escritos testemunhavam autenticamente a fé apostólica. Esse discernimento não foi mera escolha filológica, mas um ato de fé iluminado pelo Espírito. A formação do cânon é, assim, um ato da Igreja ouvinte, que reconhece na Escritura a voz de seu Senhor.

 2. A regra da fé (regula fidei).

Paralelamente à fixação do cânon, houve o discernimento das fórmulas fundamentais da fé, que culminaram nos símbolos e credos. Essa “regra” foi a audição viva da Palavra, que serviu de critério para distinguir a autêntica tradição apostólica das interpretações gnósticas ou heterodoxas.

 3. A forma litúrgica.

A liturgia foi o espaço onde a Palavra se tornou celebração, oração e comunhão. O culto cristão — especialmente a eucaristia — não é simples expressão, mas é parte constitutiva da escuta da revelação. É na liturgia que a Igreja reconhece, glorifica e interioriza o mistério de Cristo.

 4. A integração do pensamento filosófico.

A assimilação do melhor da filosofia grega — em particular de sua linguagem metafísica e racional — fez parte do mesmo processo de escuta. A fé, ao encontrar o logos grego, não o absorveu servilmente, mas o purificou e o elevou. O diálogo com a razão foi, para a Igreja antiga, um ato de fidelidade à própria Palavra, que é Logos. Assim, a teologia patrística integra a filosofia como parte da expressão da fé.

Esses quatro momentos — Escritura, Regra de fé, Liturgia e Razão filosófica — formam a tessitura da audição eclesial que constituiu o “período dos Padres”. Com o fechamento desses processos, entre os séculos VIII e IX, conclui-se o tempo fundacional da Igreja em seu modo de ouvir e formular a Palavra.


O tempo dos Padres e o caráter ecumênico da patrística

Contra a proposta de Michel Benoît, que estendia o tempo patrístico até o cisma de 1054, Ratzinger entende que o “tempo dos Padres” se encerra antes, quando a Igreja já havia delineado definitivamente suas estruturas dogmáticas, litúrgicas e canônicas.

Esse tempo, no entanto, é anterior às grandes rupturas do cristianismo — tanto a separação entre Oriente e Ocidente quanto a Reforma. Por isso, tem um valor ecumênico: nele, a Igreja viveu a fé indivisa, e os Padres, como ouvintes da mesma Palavra, permanecem patrimônio comum de todas as confissões cristãs.


Conclusão 

A autoridade dos Padres deriva, portanto, não de uma aprovação posterior, mas do fato de terem sido testemunhas e participantes da constituição viva da fé. O seu ensinamento é normativo não por decreto, mas por origem: são os primeiros a traduzir em pensamento, culto e vida o evento da revelação cristã.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

É possível duvidar de tudo?

É possível duvidar de tudo? Um desafio de 800 anos que ainda assombra a filosofia Você já parou para pensar se é possível duvidar de absolutamente tudo? Será que podemos colocar em questão a própria existência da verdade? No século XVII, o famoso filósofo René Descartes tentou fazer exatamente isso. Ele mergulhou numa dúvida radical, questionando até mesmo os sentidos e a matemática, para encontrar uma única certeza inabalável: o famoso “ Penso, logo existo ”. A partir desse ponto fixo, ele buscou reconstruir todo o conhecimento. Mas o que poucos sabem é que, cerca de 400 anos antes de Descartes, outro gigante do pensamento já havia proposto uma dúvida ainda mais profunda e radical: Santo Tomás de Aquino. E a conclusão dele foi exatamente o oposto da de Descartes. Enquanto o francês encontrou abrigo no Eu que pensa ( Cogito ) o frade italiano demonstrou que é impossível fugir do Ser ( Esse ).  O argumento é um dos mais poderosos e elegantes de toda a história da filosofia. E é deva...

Bontadini contra Vattimo

A crítica de Gustavo Bontadini a Gianni Vattimo está inserida no contexto do debate sobre a "deselenização" do cristianismo, que é o tema central do livro Metafisica e deellenizzazione (Vita e Pensiero, 1996), um dos mais importantes publicados por Bontadini.  Vattimo, representante de um pós-modernismo "fraco" e herdeiro da hermenêutica de Heidegger, defende uma deselenização radical. Ele vê a história do cristianismo como um processo de "esvaziamento" ( kenosis ) da metafísica forte, culminando em uma fé secularizada, caritativa e desprovida de afirmações metafísicas absolutas. Bontadini ataca esta posição com os seguintes argumentos: --- A Crítica de Bontadini a Gianni Vattimo 1. Rejeição do abandono da Metafísica Forte: Para Vattimo, a pós-modernidade significa o fim das "grandes narrativas" e das verdades absolutas. A fé cristã, nesse contexto, deve abandonar qualquer pretensão de verdade metafísica objetiva e reduzir-se a uma "ética d...

A prioridade do Sentido radical

  A Palavra é eterna; é Deus (cf. Jo 1,1). Acreditar em Deus significa reconhecer a prioridade do Sentido. A Palavra, que é Deus, é o Sentido ou a Razão originária. É a Luz verdadeira que ilumina todo homem (cf. Jo 1,9). Há quem acredite que o não-sentido seja prioritário ou que as trevas precedam a luz. O mundo teria vindo do caos ou da combinação de fatores meramente aleatórios. No entanto, quem sustenta a prioridade da desordem ou da pura casualidade, deve tirar a consequência de que a razão humana vem do não-racional, e a consciência, da não-consciência. Assim, o sentido que o homem consegue expressar viria do não-sentido radical. A palavra humana viria da absoluta não-palavra. Mas aqui se mostra uma incongruência: o caos, o não-sentido ou a não-razão inicial só podem ser explicados pela força da palavra e da razão, o que equivale a dizer que o não-sentido só se mostra como tal se é colocado no horizonte mais amplo do sentido, o que nos remete para a anterioridade radical do Se...