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A Bíblia defende a submissão da mulher ao homem?

 


O livro The Sexual Person: Toward a Renewed Catholic Anthropology, de Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, aborda a questão da dominação do homem sobre a mulher na Bíblia de forma crítica e contextualizada. Os autores exploram como as Escrituras refletem as normas culturais de suas épocas e argumentam que a tradição cristã deve discernir entre elementos históricos condicionados e princípios universais de moralidade e dignidade humana (8,6).

1. A Bíblia defende a dominação do homem sobre a mulher?

A resposta, segundo os autores, depende de como se interpreta a Bíblia. Existem textos que podem ser usados para sustentar uma visão hierárquica entre os sexos, mas também há passagens que sugerem uma relação de igualdade e dignidade mútua. O livro analisa essas duas perspectivas dentro do desenvolvimento da teologia cristã.

1.1. A visão subordinacionista

Essa perspectiva entende que a Bíblia estabelece uma ordem natural em que o homem lidera e a mulher lhe deve submissão. Os principais argumentos são:

 • O relato da criação (Gênesis 2-3): No segundo relato da criação (Gênesis 2), Eva é criada a partir de Adão e para ser sua “auxiliadora” (Gn 2,20). Após o pecado original, Deus diz que o desejo da mulher será para o seu marido e que ele a governará (Gn 3,16). Isso tem sido interpretado como um indicativo de um modelo hierárquico no qual o homem tem autoridade sobre a mulher (8,6).

 • Cartas Paulinas:

 • 1 Coríntios 11,7-12 afirma que o homem “é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem”. Isso tem sido usado para justificar a liderança masculina (8,2).

 • Colossenses 3,18 e Efésios 5,22-24 instruem as esposas a se submeterem aos seus maridos “como ao Senhor”, reforçando a ideia de que a liderança masculina é parte da ordem divina (8,12).

 • 1 Timóteo 2,12-15 proíbe as mulheres de ensinar ou exercer autoridade sobre os homens e liga essa restrição à criação e à queda no Éden.

 • Interpretação histórica: Desde os primeiros séculos do cristianismo, teólogos influenciados pelo pensamento greco-romano e pelo estoicismo reforçaram a subordinação feminina. Santo Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo, afirmavam uma certa posição secundária da mulher em relação ao homem. 

1.2. A visão igualitária

Essa abordagem argumenta que a mensagem central da Bíblia aponta para a igualdade fundamental entre homens e mulheres e que textos subordinacionistas refletem mais o contexto cultural do que uma norma divina imutável.

 • O primeiro relato da criação (Gênesis 1,27): Diferente do segundo relato, aqui Deus cria “homem e mulher” simultaneamente, à sua imagem e semelhança, sem qualquer menção de hierarquia (8,6).

 • A prática de Jesus:

 • Ele interage com mulheres de forma contrária às normas culturais da época, como ao conversar com a samaritana (João 4), ao defender a mulher adúltera (João 8,1-11) e ao permitir que mulheres fossem suas discípulas (Lucas 10,38-42) (8,2).

 • Mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição, um papel de grande importância na narrativa cristã.

 • Paulo e a nova ordem em Cristo:

 • Gálatas 3,28 proclama que “não há mais judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus”, sugerindo uma igualdade radical entre os sexos (8,2).

 • Em 1 Coríntios 7,3-4, Paulo fala sobre a reciprocidade entre marido e esposa na vida conjugal, um princípio que contrasta com normas culturais que priorizavam os direitos masculinos.

 • O Concílio Vaticano II e a evolução da teologia:

 • O documento Gaudium et Spes (1965) rejeitou a ideia da superioridade masculina como um princípio teológico e enfatizou que o matrimônio deve ser baseado na mútua doação e amor, não em dominação (8,13).

 • A visão contemporânea da Igreja enfatiza a complementaridade e igualdade entre os sexos.

2. O homem deve ser o líder e a mulher deve ser submissa no casamento cristão?

O livro argumenta que essa questão depende de como se entende o casamento e o papel dos sexos dentro da tradição cristã. Há três principais abordagens:

 1. Modelo Hierárquico (Tradicionalista)

 • A liderança masculina no casamento é vista como divinamente ordenada, com base nos textos bíblicos mencionados.

 • A mulher deve obedecer ao marido, e ele, por sua vez, deve amá-la como Cristo ama a Igreja.

 2. Modelo Complementarista

 • Homens e mulheres têm papéis diferentes, mas complementares, no casamento.

 • O marido é o “cabeça”, mas isso significa uma liderança servidora, e não autoritária.

 • A esposa se submete, mas há uma reciprocidade na relação.

 3. Modelo Igualitário

 • A relação entre marido e esposa deve ser baseada na parceria e na igualdade.

 • A submissão mútua é enfatizada (Efésios 5,21), e os papéis tradicionais devem ser reavaliados à luz da justiça e do amor.

3. Conclusão: O que a Bíblia realmente ensina sobre gênero e autoridade?

 • O livro sugere que a Bíblia contém tanto elementos patriarcais quanto impulsos para a igualdade. Isso porque os textos bíblicos foram escritos dentro de contextos culturais específicos.

 • A teologia cristã deve discernir entre normas condicionadas culturalmente (como a submissão da mulher ao homem) e princípios universais (como a dignidade e a igualdade de todos diante de Deus).

 • Os autores defendem que, à luz da tradição cristã e do desenvolvimento da moral teológica, o ideal cristão é um relacionamento baseado na reciprocidade e não na dominação (8,6).

Assim, embora haja passagens que parecem apoiar a liderança masculina, há também uma forte corrente na Bíblia e na teologia cristã que aponta para a igualdade e o respeito mútuo. O desafio teológico é interpretar esses textos de maneira que reflitam os valores centrais do Evangelho.

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