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Somos sempre precedidos

S. Agostinho, que ensinou que somos sempre precedidos, pode ser visto como mestre da humildade ontológica. 

Há em nós uma estranha impressão de novidade quando nos despertamos para o mundo. Chegamos como quem irrompe em meio a algo já em curso: não escolhemos nascer, não escolhemos o tempo, nem o lugar, nem os corpos que nos geraram. A própria vida nos é dada antes que a possamos desejar. Nesse sentido, nossa existência é sempre chegada tardia. O mundo nos precede: a linguagem nos é ensinada, nossos vínculos são herdados, as estruturas da carne e da natureza nos são prévias.

Agostinho, com a sensibilidade que só os grandes têm para as verdades esquecidas, pressentiu isso de forma decisiva: venimus post — chegamos depois. A alma não é o início absoluto; ao contrário, ela encontra um mundo que a antecede e a sustenta. Isso é verdade não apenas em termos biológicos ou históricos, mas, mais profundamente, em termos espirituais e ontológicos.

Pois não apenas o corpo nos antecede. Também a verdade nos precede. Quando julgamos, não inventamos critérios; reconhecemos medidas. Quando amamos, não criamos o bem; somos por ele atraídos. Quando pensamos, não geramos a verdade; antes, a ela nos submetemos. Em sua teoria das verdades eternas, Agostinho sustenta que todo juízo da mente remete a algo que a transcende. A alma é mutável, mas conhece o que é imutável. Portanto, só pode conhecer o eterno se de algum modo participar do eterno. Assim, as verdades que orientam a mente não procedem da mente mesma, mas a governam de cima — são como luzes que não nascem do olhar, mas sem as quais nada pode ser visto.

Reconhecer que somos precedidos é reconhecer que não somos a fonte de tudo. Isso é o princípio da humildade filosófica e religiosa. A alma não é absoluta. Ela é relativa ao que a antecede e a fundamenta — ao que a torna possível. E aqui está o coração da espiritualidade agostiniana: o reconhecimento de que há um Deus interior intimo meo et superior summo meo — mais íntimo do que o íntimo meu, e mais alto que o mais alto meu. Ele me precede em profundidade e em altura. Antes que eu existisse, Ele já era. E se posso pensar o eterno, é porque d’Ele recebo essa luz.

O esquecimento de que somos precedidos é o que permite a ilusão de que somos autossuficientes. É o que abre caminho à negação do mistério, à recusa do transcendente, à rejeição de Deus. A autonomia absolutizada da razão ou da vontade nasce, em última instância, de uma ingratidão ontológica: o não querer reconhecer a fonte. Assim, a verdadeira sabedoria começa com a memória do que nos antecede — memória do dom, da origem, da verdade.

Somos precedidos no corpo e no espírito. O corpo vem do barro da terra moldado pelo sopro divino; a mente, da Luz eterna que a visita e orienta. E se existe em nós um desejo insaciável de plenitude, é porque não somos causa de nós mesmos. Somos sede — e só há sede onde há promessa de fonte.

Comentários

  1. Texto muito interessante que prendeu a atenção de quem perdeu o sono. Somos insaciáveis de plenitude porque não somos causa de nós mesmos. Somos sede e só há sede onde há promessa de fonte.

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