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Ruptura ou transformação? Paradigmas hermenêuticos da modernidade segundo Henrique Cláudio de Lima Vaz

 

Resumo

Este artigo propõe uma análise sistemática da concepção de modernidade em Henrique Cláudio de Lima Vaz, com base na obra Raízes da Modernidade. O autor situa-se entre duas interpretações hermenêuticas predominantes: a modernidade como ruptura e a modernidade como transformação da tradição medieval. A partir dessa tensão, Lima Vaz articula uma leitura genética da modernidade, que reconhece sua originalidade simbólica sem ignorar suas raízes intelectuais na crise do século XIII. Para isso, o artigo explora as interpretações de Carl Schmitt, Karl Löwith, Eric Voegelin, Marcel Gauchet e Hans Blumenberg, conforme analisadas por Lima Vaz.

1. Introdução

A modernidade, em seu surgimento e estrutura simbólica, constitui um dos temas mais debatidos da filosofia contemporânea. Henrique C. de Lima Vaz, em Raízes da Modernidade, propõe uma leitura filosófica da modernidade a partir de sua gênese intelectual na Idade Média, particularmente no século XIII. Longe de reduzir a modernidade a mera ruptura ou continuidade, o autor a interpreta como um fenômeno de ruptura enraizada, em que o novo emerge dialeticamente do antigo que nega, sem por isso deixar de se nutrir de suas raízes.

2. A dialética da modernidade: entre continuidade e ruptura

Lima Vaz estrutura sua análise com base num paradigma hermenêutico clássico: a tensão entre continuidade e descontinuidade. Assim como a razão grega emergiu do mito, e a teologia cristã do solo da filosofia antiga, a modernidade se forma na tensão com a tradição teológico-filosófica medieval. O autor recusa tanto a visão simplista de uma ruptura absoluta, quanto a tese de uma continuidade linear. A modernidade é, segundo ele, o resultado de uma profunda transformação das estruturas simbólicas do Ocidente, cuja raiz se encontra nas disputas filosóficas do século XIII.

3. Paradigmas hermenêuticos da modernidade

3.1. Ruptura como decadência ou deformação

3.1.1 Carl Schmitt: o Estado como secularização da soberania divina

Carl Schmitt interpreta a modernidade política como secularização da teologia. O poder absoluto do Estado moderno reflete, de forma imanente, a onipotência de Deus. O espaço político substitui o espaço sagrado, e a legitimidade deixa de vir da transcendência. Para Lima Vaz, Schmitt representa o modelo pessimista da modernidade como degeneração de arquétipos cristãos.

3.1.2 Karl Löwith: a filosofia da história como teologia secularizada

Karl Löwith defende que o conceito moderno de história como progresso deriva da teologia cristã da história da salvação. O plano providencial é transposto para a imanência da razão histórica. Essa dependência oculta do cristianismo, segundo Lima Vaz, relativiza a suposta originalidade moderna.

3.1.3 Eric Voegelin: a gnose moderna como inversão da transcendência

Eric Voegelin interpreta a modernidade como gnose secularizada. O ser humano, buscando a salvação pela razão e pela técnica, inverte o movimento ascendente da transcendência. Essa inversão caracteriza-se como anoia, insensatez do espírito. Para Voegelin, a modernidade desestrutura o espírito humano ao absolutizar a imanência.

3.2. Ruptura como progresso e emancipação

3.2.1 Marcel Gauchet: o cristianismo como "religião da saída da religião"

Gauchet propõe que o próprio cristianismo ocidental preparou a emergência da modernidade, ao separar radicalmente Deus e mundo. Assim, a política pôde emancipar-se da religião. A modernidade é, portanto, uma realização histórica do próprio impulso cristão. Para Lima Vaz, esta leitura mantém ainda uma analogia com os arquétipos eclesiais da tradição.

3.2.2 Hans Blumenberg: a autoafirmação moderna e a rejeição da secularização

Hans Blumenberg recusa o conceito de secularização. A modernidade, segundo ele, é uma resposta legítima ao esgotamento das estruturas teológicas. O sujeito moderno se autoafirma como causa sui. Lima Vaz reconhece em Blumenberg o mais vigoroso esforço filosófico de legitimação autônoma da modernidade, mesmo discordando de sua exclusão das raízes medievais.

4. A posição de Lima Vaz: ruptura enraizada

Henrique C. de Lima Vaz propõe uma via intermediária entre esses dois paradigmas. A modernidade é, para ele, uma estrutura simbólica nova, mas que emerge de raízes profundas plantadas na teologia e na metafísica medievais. A crise do século XIII, marcada pela introdução da razão aristotélica no universo cristão, preparou o terreno para a autodiferenciação da razão moderna.

5. Considerações finais

A leitura de Lima Vaz da modernidade evita tanto o lamento nostálgico quanto a celebração acrítica. Ele propõe uma análise filosófica da emergência da modernidade como resposta à crise da tradição, enraizada na história das ideias. A modernidade não é nem simples negação do passado, nem continuação mecânica, mas um novo começo carregado de reminiscências e tensões não resolvidas. Entendê-la exige retornar às suas raízes — não para restaurá-las, mas para compreender o sentido do que se transformou.

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