Pular para o conteúdo principal

Existir é ter recebido. Ulrich relê Tomás em chave personalista

 Seguindo pela linha de Tomás de Aquino, Ferdinand Ulrich se coloca dentro da tradição metafísica tomista, mas com uma sensibilidade profundamente renovada pela filosofia do século XX — especialmente pela fenomenologia e pelo personalismo. Vamos explorar como Ulrich lê e reinterpreta Tomás de Aquino em relação à questão do ser:

1. O ser como actus essendi (ato de ser)

Para Tomás de Aquino, a realidade mais profunda de um ente não é sua essência, mas seu esse — o ato de ser. Ulrich retoma esse princípio com força, insistindo que:

 • O ser (esse) é mais fundamental que qualquer determinação formal (essentia).

 • Todo ente é composto de essência e ato de ser, mas esse ato de ser não é algo que ele possua por si: é recebido.

 • Daí, a criatura é “ser por participação”, em contraste com Deus, que é “ser por essência” — o ipsum esse subsistens.

Para Ulrich, essa estrutura é a chave da relação: o homem, enquanto ente criado, está ontologicamente voltado para além de si, para a fonte do ser.

2. O ser como dom (donum)

Tomás já fala da criação como ex nihilo, como um ato livre de Deus. Mas Ulrich dá um passo existencial e pessoalizante: ele interpreta o esse como dom, como amor originário.

 • Esse acento personalista é uma ampliação da leitura tomista: o ser é dado por Alguém e não é neutro.

 • Essa doação implica não apenas estrutura metafísica, mas chamado à resposta, à aceitação.

 • Aqui entra a liberdade: a criatura racional é aquela que pode acolher o ser como dom, ou recusá-lo — e isso é o drama do homem.

3. A analogia do ser: participação real

Ulrich mantém e aprofunda a analogia do ser de Tomás. Ele insiste que a relação entre Deus e as criaturas não é unívoca nem equívoca, mas analógica por participação real.

 • Deus é o Ser (com “S” maiúsculo); as criaturas participam do ser.

 • Essa participação não é metafórica, mas efetiva — a criatura realmente é, mas só porque é sustentada continuamente no ser por Deus.

 • Portanto, ser é sempre relação com Deus — e, por extensão, com os outros.

4. A resposta existencial: gratidão e amor

Enquanto Tomás trabalha em linguagem mais abstrata, Ulrich — sem negar a estrutura tomista — se volta para a resposta existencial: o homem não é apenas alguém que “existe”, mas alguém que se reconhece como dado, como amado, e que é chamado a responder com amor e gratidão.

 • Aqui, o tomismo de Ulrich se torna quase litúrgico: ser é entrar em relação, é agradecer, é doar-se.

 • A criatura não é autossuficiente, mas recebe-se de Deus — e só se realiza na medida em que retorna a Deus.

Conclusão: um tomismo radicalizado pelo dom

Ferdinand Ulrich permanece fiel à estrutura metafísica tomista:

 • Ser como actus essendi

 • Criatura como ser por participação

 • Deus como ipsum esse subsistens

Mas ele radicaliza esse tomismo ao interpretá-lo sob o signo do dom, da relação, da liberdade e do amor. É um tomismo dramático, no qual a ontologia encontra a ética, a liberdade e a mística.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Primeira Via de Sato Tomás

A primeira via de São Tomás de Aquino para provar a existência de Deus é a chamada prova do motor imóvel, que parte do movimento observado no mundo para concluir a existência de um Primeiro Motor imóvel, identificado como Deus. Ela é formulada assim: 1. Há movimento no mundo. 2. Tudo o que se move é movido por outro. 3. Não se pode seguir ao infinito na série de motores (causas de movimento). 4. Logo, é necessário chegar a um Primeiro Motor imóvel, que move sem ser movido. 5. Esse Primeiro Motor é o que todos chamam de Deus. Essa prova se fundamenta em princípios metafísicos clássicos, especialmente da tradição aristotélica, como: • A distinção entre ato e potência. • O princípio de que o que está em potência só passa ao ato por algo que já está em ato. • A impossibilidade de regressão ao infinito em causas atuais e simultâneas. Agora, sobre a validade perene dessa via, podemos considerar a questão sob dois ângulos: 1. Validade ontológica e metafísica: sim, perene A estrutura m...

Bíblia: inspiração, pedagogia e revelação

Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes. A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspi...

Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir ( Ipsum Esse ), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma... Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingen...