Deus criou a todos para a visão sobrenatural. Estamos diante de duas grandes graças: a criação, por nada devida à criatura, que sequer existia; e a visão da face de Deus com a luz da glória, que é algo que nenhuma criatura, uma vez tirada do nada, poderia alcançar, já que a visão imediata de Deus é uma certa infinitização da criatura, realizada tão somente pelo Infinito. O fim que nos realiza para além das medidas finitas não pode ser atingido por nós sem a ajuda do Infinito. E nenhum fim finito preencheria totalmente o nosso espírito, infinito na intenção. Qualquer fim finito deixaria no espírito uma percepção de que uma lacuna ainda existe. Este é o paradoxo: o homem não pode atingir fim para o qual foi criado sem a ajuda de Outro divino. No entanto, observe-se, atingir o fim com a ajuda de outro não é nenhum demérito.
Essa vontade salvífica de Deus nunca foi cancelada e nunca foi impedida por nenhum desastre da história humana. Isso equivaleria a dizer que Deus abandonou por completo, ao menos por um certo período de tempo ou em certas áreas geográficas, homens e mulheres à própria sorte, sem nenhuma possibilidade de encontrar saída. Seria tomar o drama do pecado e certas palavras de S. Paulo a respeito de homens que não quiseram servir-se da luz que Deus lhes oferecia em sentido muito radical — e falso. Ao lado do pecado, a graça sempre esteve disponível. Deus seria uma espécie de vingador desarrazoado se abandonasse completamente os homens ao poder do pecado, o que não podemos pensar a respeito de Deus de maneira alguma.
É verdade que a Escritura usa certas palavras fortes que poderiam induzir ao rigorismo e a essa espécie de entendimento de que Deus abandonou o homem. Mas é certo ainda que a Escritura é também palavra humana e, como tal, reflete em certa medida as disposições humanas de espírito e as limitações culturais do autor humano. Não podemos interpretar simplesmente como vontade de Deus, por exenplo, a palavra do Salmo que expressa o desejo de arrebentar as crianças recém-nascidas, filhas da Babilônia, contra a rocha (cf. Sl 137,9).
A Escritura tem o seu sentido como caminho, pois reflete o caminho do Povo de Deus. É preciso ir ao que é central na Escritura, e isto é o amor incondicional de Deus e sua vontade de que todos sejam salvos. Desse modo, a graça que Cristo conquistou e que se faz visível na Igreja sempre esteve disponível, independentemente do tempo, para todos os homens que procuram com sinceridade o significado último da sua existência e veem na bondade o elemento decisivo desse significado.
Por outro lado, se a graça está disponível a todos que procuram viver segundo a sua consciência, na busca sincera do melhor que podem ver e realizar, isso não significa que a graça seja aplicada de qualquer modo ou sem a colaboração, às vezes penosa, do homem. Vencer o egoísmo para dar espaço para o Bem na nossa vida não é coisa banal.
A Igreja com seus sacramentos e com sua palavra que ecoa a Palavra continua sendo necessária para todos aqueles que têm consciência de que a graça vem por meio de Cristo.
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