Pular para o conteúdo principal

Aborto? Que ou quem é o nascituro?

 

Nascituro na 12a. semana de gestação 

Nos últimos anos, o debate sobre o aborto tem assumido contornos polêmicos e político-partidários, não raro de matiz fundamentalista, que podem obnubilar o ponto decisivo da questão. A meu ver, esse ponto consiste em saber se o embrião ou o feto tem direitos inalienáveis por gozar da dignidade de pessoa humana. É verdade que o fenômeno do aborto envolve questões várias, como educação, distribuição de renda, cultura ou mentalidade de uma sociedade, saúde pública, abortos clandestinos com morte de mulheres (sobretudo pobres), direitos da mulher etc. Tudo isso pode e deve ser considerado. Muitas vezes olhamos para o fenômeno sem indagar por suas causas mais profundas, não raro radicadas em uma sociedade injusta, incapaz de oferecer condições de vida digna e de educação de qualidade para amplas parcelas da população. É verdade também que em tempos em que os valores morais entregues pela tradição se fragilizam, o senso dos limites ou daquilo que eleva ou degrada o ser humano tende a esfumar-se, dando azo a experimentações e ideias que a curto, médio ou longo prazo podem prejudicar gravemente o bem-estar humano pessoal ou social. 

Se todas as questões que envolvem o fenômeno do aborto devem ser consideradas, a questão fundamental gira em torno da pergunta: que é ou quem é o nascituro (embrião, feto)? Note-se que usamos que para coisas e quem para pessoas. Se o nascituro é apenas um amontoado de células, obviamente não gozará da dignidade humana. Se é simplesmente uma vida infra-humana, por certo não terá direitos decorrentes da dignidade humana. Mas podemos, sinceramente, dizer que o nascituro é apenas um amontoado de células ou simplesmente uma vida infra-humana?

Para começo de conversa, a ciência esclarece que uma nova vida se inicia com a fecundação, que já não é a vida nem do espermatozoide nem do óvulo, que já tinham atingido, isoladamente, o máximo de seu desenvolvimento. Pela fecundação, ao contrário, dá-se um evento, algo inédito: um novo ciclo vital se inicia, que, se não impedido, resultará num ser humano adulto, pleno de expressões pessoais. Desde a fecundação temos um novo genoma humano, com seus 22 cromossomos pareados mais o cromossomo X pareado com outro cromossomo X (sexo feminino) ou com o cromossomo Y (sexo masculino). Assim, a nova vida que se inicia pertence à espécie humana e, desde o seu ponto de partida, já possui identidade clara e orientação segura para o seu desenvolvimento. Nada receberá de fora, a não ser a nutrição e a proteção de que precisa. Goza, portanto, de autonomia bem definida. 

Podemos classificar esta nova vida como um simples amontoado de células (fase embrionária) ou como uma vida simplesmente infra-humana (fase embrionária ou fetal)? Ora, uma casa não é um simples amontoado de tijolos. É a ordem dos tijolos que faz a casa. De modo análogo, no genoma do embrião, temos informação clara que faz dele mais do que um simples agregado de células – faz dele, na verdade, repitamo-lo, uma vida da espécie humana com identidade e orientação bem precisas.

Como poderíamos dizer com segurança que a nova vida é simplesmente uma vida infra-humana? Até quando seria vida infra-humana sem as prerrogativas da dignidade? Até os nove meses, imediatamente antes do parto? Alguns minutos depois, com o parto, já seria vida propriamente humana? Alguns querem medir e estabelecer marcos temporais a partir dos quais a vida passaria a merecer respeito e a possuir direitos invioláveis. A partir da nidação? Depois da formação dos órgãos? Quando começa a sentir? Com a formação do sistema nervoso? Note-se que o sistema nervoso completa sua formação só na adolescência. Ora, desde que o novo ciclo vital, com o novo genoma, inicia-se a partir da fecundação, não há critérios objetivos para estabelecer cortes no seu desenvolvimento, pois o processo se dá num continuum ininterrupto, e toda tentativa de seccioná-lo será mais ou menos arbitrário.  

Que seria vida humana e vida infra-humana? Se a vida humana é a vida que traz o genoma humano e, portanto, pertence à espécie humana, como negar o estatuto de vida humana ao nascituro desde a fecundação? Ou vida humana seria a vida que se pode expressar como pessoa? É verdade que o nascituro não se pode ainda expressar como pessoa. Mas o recém-nascido pode? O comatoso pode? Eles não seriam vida humana? Não teriam dignidade humana?

Veja-se que não é a ciência que pode decidir unilateralmente a respeito da vida humana e da sua dignidade. Não se trata simplesmente de uma questão de precisão de relógio ou de dados científicos brutos, mas sobretudo de significado. A ciência nos oferece dados importantes, sobre os quais devemos lançar nosso olhar ético e filosófico. Sigo os filósofos que distinguem entre personeidade e pessoalidade. A personeidade é a estrutura vital que está na base de pessoalidade, que, por sua vez, é a vida em suas ricas expressões pessoais. O nascituro, o recém-nascido e o comatoso podem não ser capazes de expressar-se com a riqueza da consciência e da liberdade (pessoalidade), mas trazem a estrutura que é o fundamento de qualquer expressão pessoal humana (personeidade). O nascituro é uma vida que traz o genoma humano; se não houver nenhum entrave, um dia essa vida poderá expressar-se plenamente como pessoa. Por ser o nascituro dotado de personeidade, posso e devo (vejo-o como o caminho mais sensato e mais seguro) atribuir-lhe (do campo jurídico inglês, to ascribe) a dignidade de pessoa humana, claramente reconhecida como presente em quem se expressa como pessoa.

Ademais, é preciso reconhecer como respeitável o processo pelo qual cada pessoa humana teve de passar para chegar a poder expressar-se como pessoa. Ora, toda pessoa humana um dia iniciou sua trajetória como um zigoto. Sem este início, nenhuma pessoa poderia ser pessoa. Assim, o processo que tem começo na fecundação deve ser absolutamente respeitado, pois, sendo o caminho inicial percorrido por todos nós, sem o qual não poderíamos ser quem somos hoje, merece que se lhe atribua (to ascribe) o peso e a luz da dignidade humana pessoal.

Desse modo, se podemos ou mesmo devemos atribuir (to ascribe) dignidade de pessoa humana ao nascituro, nada poderá justificar uma ação, querida como meio ou como fim, contra a sua inocente vida. Podemos considerar todos os problemas ligados ao aborto, mas não se pode eludir a questão fundamental: se se pode e deve atribuir dignidade humana pessoal ao nascituro, ele deve ser absolutamente respeitado. Socorra-nos Immanuel Kant, cujo imperativo categórico vê na pessoa um fim em si mesmo, nunca um simples meio. Por tudo isso, não aceitar o aborto afigura-se-me como um imperativo. Mas procurar combater as graves injustiças sociais, que muitas vezes agem como causa mais profunda do fenômeno social do aborto, é também um imperativo não menos grave.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Nota Mater Populi Fidelis: equilíbrio doutrinal e abertura teológica

A recente Nota doutrinal Mater Populi Fidelis , publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, representa um exemplo luminoso do equilíbrio eclesial característico do magistério autêntico. Ela não é nem maximalista nem minimalista: não pretende exaltar Maria acima do que a Revelação permite, nem reduzir sua missão à de uma simples discípula entre os fiéis. O documento reafirma com clareza a doutrina tradicional da Igreja: Maria cooperou de modo singular e insubstituível (por conveniência da graça) na obra da redenção realizada por Cristo. 1. A reafirmação da doutrina tradicional O texto recorda que a Virgem Santíssima participou de maneira única no mistério redentor — não como causa autônoma, mas como colaboradora totalmente dependente da graça. Sua participação é real e ativa, ainda que subordinada à mediação única de Cristo. Assim, a doutrina da cooperação singular de Maria na redenção e a doutrina da sua intercessão na comunhão dos santos permanecem plenamente válidas e reconhecid...

Maria: tipo da Igreja, modelo na ordem da fé e da caridade e nossa mãe

Resumo do texto “Maria, tipo da Igreja, modelo na ordem da fé e da caridade e nossa mãe” – Pe. Elílio de Faria Matos Júnior ⸻ 1. Introdução O artigo propõe refletir sobre o mistério de Maria à luz do capítulo VIII da Lumen Gentium , mostrando-a como tipo (figura, exemplar) da Igreja, fundamentada em sua fé e caridade como resposta à graça divina. Nessa condição, Maria é colaboradora singular da salvação e mãe dos discípulos de Cristo e da humanidade. ⸻ 2. Maria, figura da Igreja No Concílio Vaticano II, havia duas tendências:  • Cristotípica: via Maria como figura de Cristo, acima da Igreja.  • Eclesiotípica: via Maria como figura da própria Igreja. Por pequena maioria, o Concílio optou por tratar Maria dentro da constituição sobre a Igreja, mostrando que ela deve ser compreendida a partir da comunidade dos redimidos. Assim, Maria pertence à Igreja como seu membro mais eminente, e não se coloca fora ou acima dela. Antes do Concílio, a mariologia frequentemente fazia paralelos ...

O título de Corredentora. Por que evitá-lo?

Dizer que o título de Corredentora aplicado a Maria não é tradicional, é ambíguo e deve ser evitado não significa diminuir nem obscurecer o singular papel da Mãe de Deus na história da salvação.  Maria foi ativa na obra da salvação, e o foi de maneira única e no tempo único da encarnação do Verbo, de sua paixão, morte e ressurreição. No entanto, a sua atividade é sempre uma resposta — uma resposta ativa — à graça e à absoluta iniciativa de Deus. O único autor da salvação é Deus mesmo. É o Pai, que envia o Filho e o Espírito. É o Filho, que, enviado do Pai, encarna-se por obra do Espírito e se doa até a morte de cruz, ressuscitando em seguida. É o Espírito do Pai e do Filho, que, enviado por ambos, age na Igreja e em cada coração aberto, humilde e sincero. Isso sempre foi claro para todo católico bem formado.  A disputa sobre a conveniência ou não do título Corredentora gira mais em torno de questões semânticas ou linguísticas do que sobre a importância e o lugar inquestionável...