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Jó e o mistério do sofrimento humano


O livro de Jó é um dos mais interessantes da Bíblia Hebraica. Trata-se de um drama escrito por um autor (ou redator final) inconformista, que se pôs a criticar a tradicional teologia da retribuição, muito arraigada no pensamento israelita de então. A época é certamente pós-exílica (século V ou IV a.C.). O autor critica uma determinada teologia, mas não o faz por meio de um tratado sistemático como faríamos hoje; veicula seu pensamento num conto dramático.

O inconformismo do autor expressa-se no inconformismo do personagem Jó. Sendo justo e profundamente religioso, Jó deveria ser sempre abençoado em sua saúde, em seus filhos e em suas posses. Essa, ao menos, era a teoria, a teologia da retribuição. Mas à teoria é apresentada a realidade. Ao discurso teológico abstrato vem contraposta a existência concreta de um homem. Jó, que fora muito abençoado na saúde, nos filhos e nos bens, de repente perde tudo. É golpeado duramente. Será que Jó se conservará sempre paciente? Não é bem isso que acontece.

O leitor sabe que o drama é composto de dois mundos: o céu, onde as coisas são decididas, e a terra, onde as coisas acontecem. Ao leitor é dado conhecer o sentido das coisas que acontecem a Jó. Mas Jó não o sabe. Tudo lhe parece sem sentido. Seu mundo se desmorona ante a sua total ausência de compreensão. Por que acontece o que acontece? Por que o sofrimento bate à porta? Por que o justo é arruinado? Essas são questões de ontem e de hoje.

No céu Deus é questionado por Satã: “É a troco de nada que Jó teme a Deus?" (Jó 1,9). A figura de Satã não é ainda a do Diabo do cristianismo, anjo decaído, mas é a de um funcionário da coorte celeste, uma espécie de inspetor, encarregado de observar o comportamento dos homens e de acusá-los diante de Deus. Satã tem livre acesso ao céu e se apresenta à presença do Altíssimo junto com os “filhos de Deus”. Deus sabe que Jó é justo e piedoso. Disso Satã também não duvida. O que é colocado em dúvida por Satã são as motivações de Jó. Será que Jó não é assim tão fiel só porque tudo lhe vai bem? Será que se ele sofrer reveses não amaldiçoará Deus? Esse questionamento é apresentado a Deus por Satã. Numa sociedade que fazia muita conta da honra e da vergonha, amaldiçoar Deus era considerado o ato mais injusto e mais agressivo contra Deus.

Deus permite que Satã toque no seu servo Jó, tirando-lhe, passo a passo, os bens, os filhos e a própria saúde, menos a vida. Jó perde tudo. Perde a própria dignidade. Senta-se nas cinzas, onde se joga o lixo, e raspa-se com um caco de argila. O prólogo da obra afirma que Jó se resignou, embora sua mulher o instigasse a maldizer a Deus. Se de Deus recebemos os bens, por que não receber também os males? — pergunta Jó. Parece estar conformado em sua desventura mundana vinda após grandes felicidades: "Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!" (Jó 1,21).

No entanto, quando se sai do prólogo, feito em prosa, e se entra na parte do diálogo com os amigos, feito em poesia, temos a figura de um Jó diferente, inquieto, incapaz de compreender o que lhe ocorre. Temos aí um Jó que amaldiçoa o dia de seu nascimento e chama Deus em causa:

Pereça o dia em que nasci e a noite em que foi dito: ‘Nasceu um menino!’. Que esse dia se torne em trevas! Que Deus, lá do alto, não se incomode com ele, que a luz não brilhe sobre ele! Que trevas e obscuridade se apoderem dele, que nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem, que a sombra o domine. Esse dia, que não seja contado entre os dias do ano, nem seja computado entre os meses! Que seja estéril essa noite, que nenhum grito de alegria se faça ouvir nela. Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, aqueles que são hábeis para evocar Leviatã! Que as estrelas de sua madrugada se obscureçam, em vão espere a luz e não veja abrirem-se as pálpebras da aurora. Pois não me fechou as portas do ventre que me carregou para me poupar a vista do mal! Por que não morri ainda no seio materno, ou pereci ao sair das entranhas? Por que dois joelhos me acolheram, e dois seios me amamentaram? Estaria agora deitado e em paz, dormiria e teria o repouso com os reis, árbitros da terra, que constroem para si mausoléus; ou estaria entre os príncipes que possuíam o ouro, e enchiam de dinheiro as suas casas. Ou, então, como o aborto escondido, eu não teria existido, como as crianças que não viram a luz. Ali, os ímpios cessam os seus furores, ali, repousam os exaustos de forças. Ali, os prisioneiros estão tranquilos, já não mais ouvem a voz do capataz. Ali, juntos, os pequenos e os grandes se encontram, o escravo ali está livre do jugo do seu senhor. Por que concede ele a luz aos infelizes e a vida àqueles cuja alma está desconsolada, que esperam pela morte sem que ela venha, e a procuram mais ardentemente do que um tesouro, que se alegrariam intensamente diante do sepulcro? Ao homem, cujo caminho está oculto, a quem Deus cerca de todos os lados? Em lugar do pão tenho o soluço, e os meus gemidos se espalham como a água. Todos os meus temores se realizam, e aquilo que me dá medo vem atingir-me. Não tenho paz, nem descanso, nem repouso; o que vem é agitação" (Jó 3,3-26).
Três amigos chegam para consolar a Jó. Num primeiro momento, impressionados pela desventura do amigo, eles tomam a atitude mais adequada: o silêncio. Estão ao lado do amigo, mostram-se próximos, mas parecem ter consciência de que a palavra humana nada pode diante de uma situação tão desoladora. Essa atitude, porém, logo dá lugar à vontade de falar. E começam a fazer discursos, aos quais Jó responde com palavras cheias de sofrimento.

Os amigos defendem a teologia da retribuição: se Jó está sofrendo assim, é porque algum pecado ele tem, ainda que seja um pecado oculto ou inconsciente. Deus é justo, dizem eles. O homem justo é sempre recompensado, ao passo que o mau é infeliz. Jó deveria arrepender-se e voltar-se para Deus, para que pudesse sair do abismo no qual se encontrava. Mas Jó não aceita a teoria dos amigos passivamente. A realidade é maior do que a teoria e a contradiz. Essa é a profunda convicção de Jó. Ele não cometeu nenhum pecado que merecesse punição. Jó acusa os amigos de não serem verdadeiros amigos, pois um amigo de verdade não coloca Deus contra o homem sofredor. Mesmo que esse homem abandonasse a religião, um amigo não poderia abandoná-lo.

Os sofrimentos de Jó são tão intensos que ele deseja que o dia do seu nascimento se transforme em trevas — é justamente o movimento inverso da criação divina, que fez brilhar a luz sobre as trevas. Jó também deseja que a morte o liberte; ora, invocar a morte como libertação está em completo contraste com a ação atribuída a Deus pela fé de Israel: Deus age libertando os seus da morte e os conduzindo à vida.

O leitor (também os personagens Deus e Satã) sabe desde o início que os infortúnios de Jó não têm nada a ver com punição devido a pecados. No mundo inferior da terra, o sofrimento de Jó é incompreensível para o próprio Jó. Para seus amigos, é explicável à luz da teologia da retribuição. Mas ninguém na terra sabe realmente o que se passa no mundo superior, o céu. A verdade das coisas que se decidem no céu é inacessível à terra. No entanto, Jó, que se inquieta com o que se passa, rejeita a explicação dos amigos e busca respostas novas, está mais próximo da verdade inacessível do que os amigos, que propõem respostas velhas para problemas novos. A teoria dos amigos são como uma rede que já não é capaz de apanhar os peixes novos que se apresentam.

Um quarto amigo (?) aparece de repente no drama. É jovem e se chama Eliú. Parece falastrão, mas muda o tom do discurso feito até então. Ele acha que os três não souberam defender a Deus e que Jó acusa injustamente a Deus. Os três amigos queriam justificar Deus lançando-o contra o sofrimento de Jó. Jó, tomado por uma angústia extrema, punha em dúvida da justiça de Deus e achava mesmo que Deus tinha-se colocado a persegui-lo. No fundo, Jó conservou a fé, mas a que preço! A sua fé teve de atravessar a dúvida e a inquietação. Era uma fé sofrida, mas era a fé que quem manteve a esperança de ver a Deus antes que fosse consumido pela desgraça total.

Eliú sente-se impulsionado a falar coisas novas. Sua fonte parece ser a contemplação de Deus na criação e o mistério que circunda todas as coisas. Diante do mistério, a atitude mais sensata é o temor. Não é o medo, mas reverência e a consciência de que se está diante de algo que não se pode medir. Fala do sofrimento não como punição, mas como educação ou redenção. A atitude de Eliú parece ser mais aberta do que a dos três outros amigos, fechados que estavam na doutrina da retribuição.

É só então no final que Deus aparece. O texto é poético, como o do diálogo dos amigos. A manifestação de Deus tem um nome técnico: teofania. Deus não está dentro de um palácio ou templo nem está sentado num trono. As imagens tradicionais não servem aqui. Deus se apresenta no meio de uma tempestade. Aparece como criador. Faz ver a Jó a grandeza inenarrável da sua obra e a profundidade imensurável de seu mistério. A imagem precedente de Deus conversando com Satã no prólogo deve ser vista simplesmente como uma imagem. O Deus verdadeiro está para além de tudo o que podemos determinar ou imaginar. Se Deus se reduz a uma resposta para problemas que nós formulamos, ele se torna um ídolo. Ele não pode reduzir-se a peça-chave da solução dos enigmas que surgem na nossa pequena cabeça. Ele está além.

A teofania indica a Jó que a atitude a tomar diante do mistério de Deus manifestado em sua criação é: mais contemplação e menos afetação. Jó julgou que sua honra de inocente fora lesada e que, diante de um tribunal, deveria ser declarado inocente. Mas para que Jó fosse declarado inocente, Deus deveria ser culpado. Essa era a lógica. Nisso Jó se expõe à hybris, ao comportamento desmesurado, pois pretende que Deus lhe preste contas. Se, de um lado, ele não teve pecado para cair no sofrimento, de outro lado, arvorando-se em zelar pela própria honra e chamando a Deus para um tribunal, arrisca-se a cair no maior erro que o ser humano pode cometer: julgar que o cosmo e Deus existem somente para lhe dar as satisfações exigidas pelo seu pequeno pensamento. A verdade é que estamos envoltos num dinamismo de gratuidade que não podemos explicar. Nada nos é devido. Nem podemos nos levantar com pretensos direitos em confronto com a Origem da nossa existência. Somos fruto de uma Fonte misteriosa que jorra gratuidade. Pequeninos pela nossa localização no âmbito da totalidade, somos, no entanto, grandes pelo poder de contemplar e vislumbrar, no mistério, o rosto de Deus.

Jó, ao final, encontra a paz, mesmo sem ter recuperado o que perdera. Seu enorme sofrimento não foi explicado, mas Jó entendeu que Deus estava presente, e isto lhe bastou. Não foi a mudança das coisas que deu paz ao coração de Jó, mas o seu novo olhar é que entendeu que Deus é mistério - mas mistério que está presente -, e nisso encontrou serenidade.

Deus repreende os amigos de Jó, que não souberam falar. A teologia deles falhou. Eles agora devem se dirigir a Jó para que este interceda por eles. Embora Jó tivesse estado muito afetado e atordoado, a sua inquietude o colocou mais próximo do mistério de Deus do que estavam os amigos com suas respostas esquematizadas e fechadas.

O epílogo, em prosa, diz que, depois de tudo, Jó foi de novo abençoado com saúde, filhos e bens. Parece ceder à teologia da retribuição que fora criticada antes. Mas a lição estava dada: Deus é mistério e sua presença não é a presença imaginada por nós, a presença que mais se ajusta aos nossos problemas, mas a presença, efetiva, de quem é mais alto do que nossa altura e mais íntimo do que nossa intimidade.

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