Inspiração bíblica: Deus fala na história e não por ditado
Durante muito tempo, imaginou-se a inspiração bíblica segundo um modelo simplificado, quase mecânico: Deus “ditaria” e o ser humano apenas escreveria. Ou, de modo mais sofisticado, Deus inspiraria o autor humano a escolher cada palavra disponível na sua cultura para expressar ideias, que seriam queridas diretamente por Deus, o que chega a quase equivaler a um ditado. Essa compreensão, embora bem-intencionada, não faz justiça nem à riqueza dos textos bíblicos nem ao modo concreto como Deus age na história. Hoje, a teologia bíblica e o Magistério da Igreja ajudam-nos a entender a inspiração não como um ditado celeste, mas como um processo vivo, histórico e espiritual, no qual Deus conduz um povo inteiro e, dentro dele, suscita testemunhas e intérpretes.
A Bíblia não caiu do céu pronta. Ela nasceu na vida concreta de um povo que caminhava, sofria, lutava, errava, crescia, esperava e rezava. Por isso, antes de falar de livros inspirados, é preciso falar de um povo animado pelo Espírito. A inspiração não começa com textos, mas com uma história: a história de Israel sendo atraído por Deus, lentamente, pedagogicamente, para a verdade.
Deus não revelou tudo de uma vez. Revelou-se como educador da humanidade, que respeita os tempos de crescimento espiritual de seu povo. A Bíblia, assim, reflete esse itinerário em todas as suas palavras e em todos os seus livros. Ela contém tanto grandes intuições espirituais quanto etapas ainda marcadas por limites culturais, políticos e morais.
Antropomorfismos e violências: o testemunho de uma fé em formação
É exatamente essa dimensão histórica que explica os antropomorfismos e os textos que hoje ferem nossa sensibilidade: guerras santas, extermínios, punições coletivas, imagens de Deus violento, nacionalista e parcial.
Esses textos não devem ser lidos como se Deus tivesse mandado matar, mas como relatos produzidos por um povo que interpretava os acontecimentos históricos com as categorias religiosas disponíveis naquele tempo. Quando Israel vence uma guerra, atribui a vitória a Deus. Quando perde, interpreta como castigo. Quando sobrevive, vê nisso uma prova da eleição divina. Deus está sempre agindo, mas nem sempre se distingue o que é devido à ação de Deus e à ação do homem. A teologia ainda está em gestação.
Deus é compreendido conforme as estruturas mentais de cada época: primeiro como chefe de tribo, depois como rei nacional, depois como juiz universal, mais tarde como Pai. A imagem de Deus evolui, amadurece, purifica-se.
O Antigo Testamento não é uma coleção de informações sobre Deus, mas a história de uma fé em transformação. Ele não descreve Deus “como Ele é”, mas mostra como o povo foi aprendendo a reconhecer Deus.
Por isso, os textos violentos não revelam o coração de Deus, mas o coração humano em processo de conversão.
A inspiração como atração à verdade
A inspiração, portanto, não é ditado. É atração. Deus não colocou palavras na boca dos escritores; colocou uma direção na história; como Bem, Deus exerce constantemente sua atração para que as pessoas se aproximem cada vez mais do bem puro, desinteressado e universal.
O Espírito Santo não anulou a cultura, a psicologia, os conflitos e os limites dos autores bíblicos. Pelo contrário: trabalhou neles. A inspiração não suprimiu o humano, mas o atravessou.
Por isso se pode dizer, legitimamente, que:
A Bíblia é inspirada porque nasce da vida de um povo animado pelo Espírito.
A inspiração é comunitária antes de ser literária. É histórica antes de ser textual. É espiritual antes de ser verbal.
O que Deus garante não é que cada frase esteja isenta de limitações culturais, mas que o conjunto da Escritura conduz à verdade que salva.
A purificação progressiva da imagem de Deus
Ao longo da Bíblia, algo acontece silenciosamente: a imagem de Deus vai sendo transformada.
• De um Deus tribal → a um Deus universal.
• De um Deus guerreiro → a um Deus pastor.
• De um Deus vingador → a um Deus misericordioso.
• De um Deus distante → a um Deus próximo.
• De um Deus antropomórfico a um Deus transcendente
• De um Deus temido → a um Deus amado.
A Lei é interpretada de modo cada vez mais profundo pelos Profetas. Os Profetas abrem espaço para a espiritualidade pessoal que aparece nos Salmos, para a sabedoria que interpreta os acontecimentos ordinários à luz do Bem e para a esperança messiânica que entreve no futuro a realização plena do Reino de Deus.
E no centro de tudo está Jesus Cristo.
Jesus Cristo: o critério de leitura de toda a Bíblia
A inspiração bíblica alcança sua verdade plena não nos textos mais antigos, mas na pessoa de Jesus Cristo.
Em Cristo, Deus não se limita a falar: Deus se mostra. Nele desaparece a ambiguidade.
Jesus nunca justifica violência em nome de Deus. Nunca amaldiçoa povos. Nunca ordena matar. Nunca identifica inimigos de Deus. Pelo contrário:
“Amai os vossos inimigos.”
“Pai, perdoa-lhes.”
“Deus faz nascer o sol sobre bons e maus.”
Em Jesus, compreende-se tardiamente aquilo que sempre esteve sendo preparado:
Deus não é inimigo de ninguém.
Deus não tem inimigos.
O único inimigo combatido por Deus é o mal que destrói o ser humano.
Tudo o que contradiz esse rosto deve ser lido como etapa superada, não como norma permanente.
A Bíblia: Palavra de Deus em palavras humanas
Dizer que a Bíblia é Palavra de Deus não significa dizer que cada palavra veio diretamente da boca de Deus, mas que:
Deus Se deixa encontrar por meio de todas as palavras da Bíblia lida em seu conjunto e à luz da fé do Povo de Deus.
A inspiração não elimina imperfeições, mas garante sentido.
Não apaga limites, mas assegura direção.
Não canoniza violência, mas conduz à misericórdia.
A Bíblia não nos dá uma fotografia exata de Deus, mas oferece o caminho para encontrá-Lo.
Conclusão
A inspiração bíblica deve ser compreendida como o movimento pelo qual Deus atrai um povo inteiro à verdade, conduzindo-o lentamente para além de seus próprios limites.
A Escritura não é santa porque é perfeita, mas porque é fruto a ação do Bem, testemunha o crescimento rumo à justiça e a misericórdia divina e conduz o homem de boa vontade Àquele que é.
A Bíblia não deve ser defendida negando seus conflitos, mas compreendida revelando sua pedagogia.
E o último critério de leitura não é Moisés, nem Josué, nem Davi:
É Jesus Cristo.
Pois, como alguém disse com sabedoria espiritual tardia, mas luminosa:
“Demorei a compreender que Deus não é inimigo dos meus inimigos. Deus sequer tem inimigos”.
Somente filhos.

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