Pular para o conteúdo principal

A morte de Jesus. Visão de Raymond Brown

 

A visão de Raymond E. Brown sobre a morte de Jesus é uma das mais respeitadas no campo da exegese católica contemporânea. Brown foi um dos maiores especialistas em literatura joanina e autor da monumental obra The Death of the Messiah (1994, 2 vols.), que analisa de maneira técnico-teológica os relatos da Paixão nos quatro evangelhos.

Seu trabalho é uma síntese rigorosa de crítica histórica, análise literária e teologia bíblica, sustentada por fidelidade à fé católica e abertura ao método científico. Abaixo, apresento um resumo estruturado da sua interpretação da morte de Jesus:

1. A morte de Jesus como fato histórico e evento teológico

Para Brown, a morte de Jesus deve ser compreendida em duplo registro:

 • Histórico: Jesus foi condenado e crucificado por decisão de Pôncio Pilatos, sob a acusação de reivindicar uma realeza messiânica que ameaçava a ordem romana.

 • Teológico: desde o início, os evangelistas narram a Paixão à luz da fé pascal, como o momento culminante da revelação de Deus e da salvação.

Brown rejeita tanto uma leitura meramente devocional quanto uma leitura puramente política: a verdade da cruz está na integração entre história e fé.

2. Responsabilidade de judeus e romanos: um olhar crítico

Brown trata com muita responsabilidade a questão da culpa pela morte de Jesus:

 • Historicamente, Pilatos foi o responsável final, e a execução foi romana.

 • As autoridades judaicas locais (sobretudo os chefes dos sacerdotes) tiveram um papel ativo na acusação e entrega de Jesus, por considerá-lo perigoso.

 • Mas Brown insiste fortemente: não se pode falar em “culpa dos judeus” como povo. A culpa recai em indivíduos concretos, e os evangelistas interpretam os fatos segundo suas comunidades e contextos.

“Os evangelistas escreveram teologia sob o signo da história, e história sob o signo da teologia.” (Death of the Messiah, vol. I)

3. As últimas palavras de Jesus: sentidos teológicos diversos

Brown analisa minuciosamente as diferentes palavras de Jesus na cruz nos evangelhos:

 • Marcos e Mateus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” – expressão de desamparo, mas também de fé, pois é uma citação do Salmo 22.

 • Lucas: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito” – revela confiança serena.

 • João: “Está consumado” – expressa o cumprimento da missão, a revelação plena do amor.

Essas variações, para Brown, não são contradições, mas perspectivas teológicas complementares, que revelam a riqueza do mistério pascal.

4. A cruz como revelação e dom

No evangelho de João, especialmente, Brown vê a cruz como o trono da glória de Cristo:

 • Jesus morre no momento escolhido por Ele (entregou o espírito), revelando sua majestade divina mesmo na Paixão.

 • A cruz é o lugar da exaltação (hypsōsis) e do dom do Espírito: não apenas sofrimento, mas plena revelação do amor do Pai e do Filho.

“A paixão joanina mostra um Cristo soberano, que entra na morte como quem entra no lugar do dom e da glorificação.” (The Death of the Messiah, vol. II)

5. Sacrifício e expiação: reinterpretando a tradição

Brown evita interpretações simplistas da cruz como substituição penal. Em vez disso, apresenta uma leitura sacrificial, mas à luz da tradição bíblica reinterpretada:

 • Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal, cuja morte liberta da escravidão do pecado.

 • Sua entrega é voluntária e amorosa, e não uma exigência sádica de um Deus irado.

 • A cruz é um ato de solidariedade radical com os pecadores, um sacrifício que reconcilia e restaura.

6. A cruz como evento pascal: inseparável da ressurreição

Brown insiste que a cruz só pode ser plenamente compreendida à luz da Páscoa:

 • Sem a ressurreição, a morte de Jesus poderia ser vista como fracasso ou martírio.

 • Com a ressurreição, ela é proclamada como evento salvífico, revelação suprema do amor divino, e fundamento da nova aliança.

Conclusão

Para Raymond Brown, a morte de Jesus é um evento histórico real, com responsabilidades humanas concretas, mas é, sobretudo, mistério de fé e de revelação. A cruz, nas diversas tradições evangélicas, é lugar de sofrimento, mas também de realeza, entrega, perdão e glorificação. Não se trata de um crime teológico cometido por Deus, mas de um ato livre de amor redentor, que revela quem é Deus e quem somos nós chamados a ser.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Criação "ex nihilo"

Padre Elílio de Faria Matos Júnior Em Deus, e somente em Deus, essência e existência identificam-se. Deus é o puro ato de existir ( Ipsum Esse ), sem sombra alguma de potencialidade. Ele é a plenitude do ser. Nele, todas as perfeições que convém ao ser, como a unidade, a verdade, a bondade, a beleza, a inteligência, a vontade, identificam-se com sua essência, de tal modo que podemos dizer: Deus é a Unidade mesma, a Verdade mesma, a Bondade mesma, a Beleza mesma... Tudo isso leva-nos a dizer que, fora de Deus, não há existência necessária. Não podemos dizer que fora de Deus exista um ser tal que sua essência coincida com sua existência, pois, assim, estaríamos afirmando um outro absoluto, o que é logicamente impossível. Pela reflexão, pois, podemos afirmar que em tudo que não é Deus há composição real de essência (o que alguma coisa é) e existência (aquilo pelo qual alguma coisa é). A essência do universo criado não implica sua existência, já que, se assim fosse, o universo, contingen...

A totalidade do Ser e o acesso filosófico a Deus em Lorenz B. Puntel

1. Introdução: a retomada da metafísica Lorenz B. Puntel insere-se no esforço contemporâneo de reabilitar a metafísica, mas de forma criativa, com um projeto que ele denomina de “nova metafísica”. Em vez de simplesmente repetir modelos do passado ou rejeitar a metafísica sob influência kantiana, positivista ou heideggeriana, Puntel busca um ponto de partida radical: a capacidade estrutural da mente de apreender a totalidade do ser. Esse deslocamento inicial é decisivo. A filosofia moderna muitas vezes concentrou-se na relação sujeito/objeto, nas condições da experiência ou nas linguagens que estruturam o pensamento. Puntel recorda que tudo isso já pressupõe algo mais originário: que sempre nos movemos no horizonte do ser como um todo. É essa totalidade que se torna o objeto próprio da nova metafísica. ⸻ 2. A dimensão epistemológica: o dado originário da razão A primeira tese é epistemológica: a apreensão da totalidade do ser é um fato originário da razão. Quando pensamos, não pensamos ...

A Nota Mater Populi Fidelis: equilíbrio doutrinal e abertura teológica

A recente Nota doutrinal Mater Populi Fidelis , publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, representa um exemplo luminoso do equilíbrio eclesial característico do magistério autêntico. Ela não é nem maximalista nem minimalista: não pretende exaltar Maria acima do que a Revelação permite, nem reduzir sua missão à de uma simples discípula entre os fiéis. O documento reafirma com clareza a doutrina tradicional da Igreja: Maria cooperou de modo singular e insubstituível (por conveniência da graça) na obra da redenção realizada por Cristo. 1. A reafirmação da doutrina tradicional O texto recorda que a Virgem Santíssima participou de maneira única no mistério redentor — não como causa autônoma, mas como colaboradora totalmente dependente da graça. Sua participação é real e ativa, ainda que subordinada à mediação única de Cristo. Assim, a doutrina da cooperação singular de Maria na redenção e a doutrina da sua intercessão na comunhão dos santos permanecem plenamente válidas e reconhecid...