Pular para o conteúdo principal

A verdade e sua negação

Elílio de Faria Matos Júnior

A inteligência humana está de tal modo orientada para a verdade que basta a mínima vontade de negá-la para que o homem se coloque diante de uma contradição que só pode ser superada se se admite a existência da verdade.

Com efeito, quem nega que a verdade existe, pretende que a sua negação seja verdadeira, o que o coloca em uma contradição performativa, isto é, o que se diz é contraditado pelo ato e dizer. O conteúdo que se pretende expressar («não existe verdade») se coloca em contradição com o ato que o expressa, pois que tal ato pretende que o referido conteúdo seja verdadeiro. Tal contradição não se reduz simplesmente a uma mera formalidade que nada acrescentaria à seriedade do pensamento.

Para muitos, é verdade, essa contradição pertenceria somente ao campo da lógica pura e quase nada diria a uma opção filosófica ou a uma visão de mundo. Deveria mesmo ser deixada de lado, pois, afinal, o establishment filosófico atual, seja ele  de certa linha hermenêutica ou pragmático-linguística, despediu-se da ideia de que a investigação deva ancorar-se a uma verdade fundamental. Tudo seria tão somente interpretação e um contínuo «remeter-se a», sem jamais chegar a estabelecer qualquer fundamento válido em si mesmo.

Mas, a meu ver, as coisas são mais complexas. A contradição acima revela-nos algo bem mais profundo do que, à primeira vista, seríamos capazes de ver. Na verdade, trata-se de algo que diz respeito à condição transcendental (condição de possibilidade) do pensar enquanto tal. A contradição está a mostrar que o pensamento está, transcendentalmente, orientado para a verdade em toda a sua universalidade. Evidentemente, não falo aqui desta ou daquela verdade, mas da verdade em quanto tal, que funciona como horizonte do pensamento enquanto tal. Pensar e pensar o verdadeiro são o mesmo. Se se nega a verdade, destrói-se o pensamento em suas raízes, isto é, em sua lógica ou em sua estrutura fundamental, sem a qual o pensamento seria puro ajustamento de palavras sem sentido algum. É o que nos mostra a contradição acima.

A contradição, com efeito, mostra que o horizonte da verdade se coloca sempre num nível mais global, mais íntimo e mais abrangente do que o nível da sua negação. Se a verdade é negada com palavras, o pensamento deixa de existir em sua lógica, isto é, naquilo que faz do pensamento, pensamento. Para que haja pesamento, é preciso que se admita a verdade!

A negação da verdade destrói o pensamento. Por isso, não é possível «pensar» (em sentido próprio) a negação da verdade. É possível, sim, articular termos, palavras ou sons que pretendam negá-la, mas na medida em que isso se faz, o pensamento mesmo se retira e se cai no nonsense, no absurdo da contradição. Assim, o pensamento enquanto tal não pode negar a verdade. 

Para o inimigo da verdade, só resta a possibilidade de «querer» que ela não exista. No entanto, se trata de um querer que, separado da inteligência, é um querer o nada ou o absurdo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Do mundo do devir ao Ser absolutamente absoluto: um itinerário do pensamento

A filosofia ocidental nasce da exigência de compreender o ser. Platão, diante do mundo sensível, marcado pelo devir, pela transformação incessante e pela imperfeição, percebeu os limites da realidade material. Para ele, o mundo visível não pode explicar-se por si mesmo: sua contingência só se torna inteligível à luz de um mundo superior, estável e perfeito — o mundo das Ideias. Assim, o imperfeito remete necessariamente ao perfeito. Aristóteles, discípulo de Platão, volta-se de modo mais atencioso para o mundo sensível. Não nega sua inteligibilidade, mas a fundamenta em princípios racionais: a substância, a forma, a matéria, as causas. O cosmos é compreensível porque é ordenado. Contudo, esse movimento ordenado exige um fundamento último que não se move: o motor imóvel. Aristóteles não o descreve como criador, mas como ato puro, causa final de toda realidade em movimento. Com o cristianismo, a intuição filosófica do Princípio se eleva a um plano novo. Antes de tudo, o cristianismo não ...

A parábola do pobre Lázaro e do rico epulão: um chamado à mudança de vida

O Evangelho deste domingo nos apresenta uma cena dramática e profundamente atual: à porta de um homem rico, que todos os dias se vestia de púrpura e linho e banqueteava esplendidamente, jazia um pobre chamado Lázaro, coberto de feridas, que desejava apenas as migalhas que caíam da mesa. Quando a morte chega para ambos, os papéis se invertem: o pobre é consolado no seio de Abraão, enquanto o rico se vê em tormento. Esta parábola pode ser contemplada a partir de dois pontos fundamentais para nossa vida cristã e comunitária. ⸻ 1. Relativizar sucessos e insucessos deste mundo A primeira lição do Evangelho é clara: nada neste mundo é definitivo. Os sucessos humanos — saúde, riqueza, fama, reconhecimento — são passageiros. Da mesma forma, os insucessos — pobreza, doença, sofrimento, abandono — não têm a última palavra. O rico epulão parecia vitorioso: rodeado de bens, de abundância e conforto. O pobre Lázaro, por sua vez, parecia derrotado: relegado à miséria, sem consolo humano. Mas a morte...

É possível duvidar de tudo?

É possível duvidar de tudo? Um desafio de 800 anos que ainda assombra a filosofia Você já parou para pensar se é possível duvidar de absolutamente tudo? Será que podemos colocar em questão a própria existência da verdade? No século XVII, o famoso filósofo René Descartes tentou fazer exatamente isso. Ele mergulhou numa dúvida radical, questionando até mesmo os sentidos e a matemática, para encontrar uma única certeza inabalável: o famoso “ Penso, logo existo ”. A partir desse ponto fixo, ele buscou reconstruir todo o conhecimento. Mas o que poucos sabem é que, cerca de 400 anos antes de Descartes, outro gigante do pensamento já havia proposto uma dúvida ainda mais profunda e radical: Santo Tomás de Aquino. E a conclusão dele foi exatamente o oposto da de Descartes. Enquanto o francês encontrou abrigo no Eu que pensa , o frade italiano demonstrou que é impossível fugir do Ser . O argumento é um dos mais poderosos e elegantes de toda a história da filosofia. E é devastadoramente simples. ...