1. A escatologia intermediária: sair do tempo cronológico
Quando o ser humano morre, ele deixa o tempo cronológico, sucessivo, mensurável como o conhecemos — o tempo da história tal como a vivemos neste mundo. A morte marca a passagem para uma outra modalidade de temporalidade, que pode ser chamada de tempo psíquico ou tempo do espírito. Seguindo a teologia clássica, podemos chamá-lo de evo. Não se trata de um tempo no sentido físico, mas de uma forma de existência na qual a consciência já não está submetida à sucessão, à dispersão e à fragmentação próprias da vida terrena, mas vive de atos espirituais. A sucessão que há, não é a dos ritmos cosmológicos, mas a do ritmo do espírito.
Nesse estado intermediário, a pessoa não perde a sua identidade nem a memória de sua vida histórica. Ao contrário, leva consigo toda a memória de sua existência concreta, com suas escolhas, relações, afetos e responsabilidades. Contudo, essa memória não permanece encerrada na parcialidade e na opacidade próprias da condição terrena. Ela começa a ser ressignificada pela visão de Deus.
Ver Deus não significa apenas contemplar um objeto supremo, mas aceder ao Sentido do todo. Enquanto na história vemos sempre fragmentos — ações isoladas, consequências imprevistas, relações interrompidas —, na visão de Deus a totalidade do real se deixa entrever como totalidade significativa. A vida passada, portanto, não é negada nem anulada, mas sublimada, infinitamente reinterpretada à luz do sentido último.
2. A ressurreição: mais que revivificação, uma nova relação com o todo
É precisamente aqui que se torna decisivo compreender o que a fé cristã chama de ressurreição. Ressuscitar não é simplesmente voltar à vida biológica, ainda que em condições melhores, nem retomar o curso da existência histórica interrompida pela morte. A ressurreição é a entrada numa nova forma de relação com a história, com o cosmo e consigo mesmo, no plano da glória de Deus.
A ressurreição não diz respeito apenas ao indivíduo isolado, mas à totalidade das relações que constituem a pessoa. Cada ser humano não existe sozinho: ele está inscrito numa rede de relações históricas, sociais, culturais e cósmicas. Suas ações deixam marcas, produzem efeitos, geram consequências que ultrapassam sua própria vida.
Ora, essas marcas não são apenas boas. Mesmo quando agimos com boas intenções, deixamos atrás de nós ambivalências, feridas, desordens, efeitos negativos que continuam a atuar na história depois de nossa morte. Quando morremos antes do fim da história, a história continua, e com ela continuam também os efeitos — bons e maus — de nossas ações.
Por isso, a ressurreição não pode ser pensada como um acontecimento meramente individual e imediato. O corpo da ressureição é, na verdade, o corpo das relações. É pelo corpo que, de fato, temos relações (com os pais, com o lugar de nascimento, com a história, com os outros...). A ressurreição supõe a redenção da história inteira. Ressuscitar significa entrar numa relação plenamente reconciliada com toda a história — inclusive com aquilo que nela foi negativo, doloroso ou destrutivo.
Somente quando a história chegar ao seu termo é que poderá haver uma comunhão plenamente redimida, na qual todas as relações sejam purificadas, curadas e reintegradas no bem.
A ressurreição é, assim, objetiva: ela não é apenas uma mudança de consciência, mas uma transformação real da relação entre a pessoa, a história e o cosmo. No plano da glória, tudo é assumido, transfigurado e ultrapassado pela graça de Deus.
3. A redenção da memória e da história
No estado intermediário, a memória da vida terrena é iluminada pela visão de Deus e a alma participa já da felicidade eterna, mas ainda não pode alcançar sua plena redenção objetiva, porque a história ainda não chegou ao seu cumprimento. Enquanto o tempo histórico continua, as feridas abertas pela ação humana ainda produzem efeitos. A memória pessoal é então vivida numa tensão: já iluminada pelo sentido último, mas ainda à espera da plena reconciliação histórica.
A ressurreição final será o momento em que toda a memória será definitivamente ressignificada, não apenas no interior da consciência individual, mas na própria realidade histórica e cósmica. Será a comunhão redimida com toda a história no bem — uma história finalmente reconciliada consigo mesma.
4. Jesus e Maria: ressurreição antes do fim da história
É nesse horizonte que se pode compreender o significado singular da ressurreição de Jesus e do dogma da Assunção de Maria. Ambos alcançam a plenitude da ressurreição antes do fim da história, não como exceção arbitrária, mas por uma razão profundamente coerente.
Tanto Jesus quanto Maria viveram uma relação absolutamente positiva com a história. Nenhuma de suas ações deixou marcas negativas, feridas a serem redimidas, desordens a serem reparadas. No caso de Jesus, sua existência foi totalmente transparente à vontade de Deus, e sua entrega até a morte foi já, em si mesma, um ato de redenção da história. No caso de Maria, sua vida foi uma disponibilidade plena à graça, sem ruptura, sem resistência, sem ambiguidade moral.
Por isso, neles não há uma história pessoal que precise ser purificada no tempo. A relação deles com a história é desde sempre uma relação de doação, de abertura, de bem. Assim, antes mesmo do fim da história, podem alcançar a plenitude não apenas da consciência pessoal, mas da comunhão objetiva com o todo: com a história e com o cosmo.
A Assunção de Maria afirma precisamente isso: que ela já participa plenamente da condição ressuscitada, não como fuga da história, mas como antecipação da sua redenção. Maria não é retirada da história; ela é o sinal de seu cumprimento.
5. Ressurreição como comunhão redimida no plano da glória
A ressurreição, portanto, não é um simples depois da morte, nem um retorno à vida antiga. Ela é a forma definitiva da comunhão, na qual a pessoa, a história e o cosmo são integrados no plano de Deus. Nesse plano, tudo é sublimado, infinitamente ultrapassado, sem ser negado. O que foi vivido na terra permanece, mas transfigurado pela verdade total, pelo sentido último, pela graça que tudo reconcilia.
A escatologia intermediária preserva, assim, duas verdades fundamentais:
— a continuidade pessoal da existência após a morte, na luz da visão de Deus;
— e a esperança da ressurreição final, como redenção objetiva de toda a história.
Entre essas duas verdades estende-se a tensão própria da fé cristã: já participamos do sentido último, mas ainda esperamos sua plena realização. A ressurreição será o momento em que essa tensão se resolverá definitivamente, quando Deus for tudo em todos, e toda a história — pessoal e cósmica — for plenamente reconciliada no bem.

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