Pular para o conteúdo principal

O dilúvio universal existiu?


Neste sábado (11/06), no curso bíblico que estou ministrando em Vargem Bonita, estudamos os capítulos de 6 a 8 do livro do Gênesis, que tratam do dilúvio e da arca de Noé. Vimos que existem no texto duas tradições entremeadas, a tradição javista e a sacerdotal. Segundo a tradição javista, o dilúvio teria durado 40 dias, e Noé, depois de cessadas as chuvas, teria ficado dentro da arca mais 21 dias, porque não havia ainda terra seca. Tudo teria durado, então, 61 dias. Segundo a tradição sacerdotal, ao invés, tudo teria durado 1 ano e 10 dias: o dilúvio teria começado quando Noé tinha 600 anos, dois meses e 17 dias, e somente quando Noé completara 601 anos, dois meses e 27 dias a terra seca teria aparecido.

Há outras discrepâncias ainda que o leitor atento pode detectar. O que dificulta a análise  é o fato de as duas tradições estarem bem misturadas no texto. Vê-se que o redator final juntou num só texto duas tradições diversas sobre o dilúvio.

Alguém pode perguntar: o dilúvio aconteceu mesmo? Deve-se dizer que um dilúvio universal não aconteceu de fato. Os autores bíblicos certamente se valeram de relatos mesopotâmicos sobre um suposto dilúvio que teria inundado toda a terra (mas ninguém na antiguidade conhecia as dimensões reais do planeta). Existia uma versão babilônica que falava de deuses que queriam destruir a humanidade com água e que teriam escolhido um homem para se salvar através de uma arca. Esses relatos podem ter uma base histórica a partir de uma grande inundação que terá assolado a Mesopotâmia. A Bíblia, porém, ao se valer dessas tradições pagãs, filtrou-as, eliminando o seu politeísmo e afirmando o monoteísmo.

O texto bíblico sobre o dilúvio é uma lenda? Sim, certamente. Mas Deus pode transmitir uma mensagem através de uma lenda. É a mensagem religiosa transmitida que interessa à nossa salvação. No caso do dilúvio, aprendemos que o acumular-se de pecados no mundo pode levá-lo a uma grande catástrofe. Não é isso que sempre temos visto nas grandes crises da história da humanidade?

Como quer que seja, Deus sempre acha um meio para a humanidade recomeçar. Não é isso que vemos na figura legendária de Noé, que se salva juntamente com a família e os animais? Deus não faz aliança com ele para um novo começo?

Comentários

  1. Salve Maria, padre Elílio. A vossa bênção.
    Ao ler esta postagem sobre o Dilúvio bíblico, fiquei um tanto confuso quanto à procedência do mesmo. Então quer dizer que a "inspiração" divina para escrever sobre tal acontecimento foi "inspirada" em relatos pagãos?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Foi. No caso, o importante é a mensagem divina que se transmite, sempre de acordo com os recursos e mentalidade da época.

      Excluir
  2. Padre, caso o senhor não conheça, existe um trabalho fantastico do Pe. Arintero sobre o diluvio: "O diluvio universaldemonstrado pela geologia". Uma obra extradordinária que precisa ser resgatada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado! Mas um dilúvio universal de fato não existiu.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ponderações sobre o modo de dar ou receber a sagrada comunhão eucarística

Ao receber na mão o Corpo de Cristo, deve-se estender a palma da mão, e não pegar o sagrado Corpo com a ponta dos dedos.  1) Há quem acuse de arqueologismo litúrgico a atual praxe eclesial de dar ou receber a comunhão eucarística na mão. Ora, deve-se observar o seguinte: cada época tem suas circunstâncias e sensibilidades. Nos primeiros séculos, a praxe geral era distribuir a Eucaristia na mão. Temos testemunhos, nesse sentido, de Tertuliano, do Papa Cornélio, de S. Cipriano, de S. Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho, de S. Cesário de Arles (este falava de um véu branco que se devia estender sobre a palma da mão para receber o Corpo de Cristo). A praxe de dar a comunhão na boca passou a vigorar bem mais tarde. Do  concílio de Ruão (França, 878), temos a norma: “A nenhum homem leigo e a nenhuma mulher o sacerdote dará a Eucaristia nas mãos; entregá-la-á sempre na boca” ( cân . 2).  Certamente uma tendência de restringir a comunhão na mão começa já em tempos pa

Considerações em torno da Declaração "Fiducia supplicans"

Papa Francisco e o Cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé Este texto não visa a entrar em polêmicas, mas é uma reflexão sobre as razões de diferentes perspectivas a respeito da Declaração Fiducia supplicans (FS), do Dicastério para a Doutrina da Fé, que, publicada aos 18 de dezembro de 2023, permite uma benção espontânea a casais em situações irregulares diante do ordenamento doutrinal e canônico da Igreja, inclusive a casais homossexuais. O teor do documento indica uma possibilidade, sem codificar.  Trata-se de uma benção espontânea,  isto é, sem caráter litúrgico ou ritual oficial, evitando-se qualquer semelhança com uma benção ou celebração de casamento e qualquer perigo de escândalo para os fiéis.  Alguns católicos se manifestaram contrários à disposição do documento. A razão principal seria a de que a Igreja não poderia abençoar uniões irregulares, pois estas configuram um pecado objetivo na medida em que contrariam o plano divino para a sex

Absoluto real versus pseudo-absolutos

. Padre Elílio de Faria Matos Júnior  "Como pensar o homem pós-metafísico em face da exigência racional do pensamento do Absoluto? A primeira e mais radical resposta a essa questão decisiva, sempre retomada e reinventada nas vicissitudes da modernidade, consiste em considerá-la sem sentido e em exorcisar o espectro do Absoluto de todos os horizontes da cultura. Mas essa solução exige um alto preço filosófico, pois a razão, cuja ordenação constitutiva ao Absoluto se manifesta já na primeira e inevitável afirmação do ser , se não se lança na busca do Absoluto real ou se se vê tolhida no seu exercício metafísico, passa a engendrar necessariamente essa procissão de pseudo-absolutos que povoam o horizonte do homem moderno" (LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia III. Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 1997). Padre Vaz, acertadamente, exprime a insustentabilidade do projeto moderno, na medida em que a modernidade quer livrar-se do Absoluto real, fazendo refluir