Pular para o conteúdo principal

Orientação da oração na liturgia (Parte I)


Padre Elílio de Faria Matos Júnior
.
Em seu livro Introdução ao espírito da liturgia, escrito em 1999, o então Cardeal Joseph Ratzinger, explica que, desde o início, os cristãos rezavam todos voltados para o Oriente – ad Orientem. A raiz desse significativo costume é uma tradição judaica. As sinagogas dos judeus, espalhadas pela diáspora, eram construídas de tal modo que a assembléia orante ficava voltada em direção ao Templo de Jerusalém. Uma vez, entretanto, que para a fé cristã Jesus substituiu o Templo, os cristãos passaram rezar voltados para o sol. Não se tratava, evidentemente, de um culto ao sol, mas de reconhecer que o cosmos fala de Cristo e que o sol é o símbolo privilegiado ao Senhor que ilumina a história. O Oriente substituiu, assim, o Templo de Jerusalém. Desse modo, Ratzinger explica que “na Igreja Antiga, a oração voltada para o Oriente sempre foi vista como uma tradição apostólica”[1]. As construções das igrejas antigas o testemunham, tendo colocado o altar, onde se celebra o sacrifício eucarístico, junto à parede oriental.

Entretanto, coisa algo diferente aconteceu com a Basílica de São Pedro em Roma. Devido às condições topográficas, teve de ser construída voltada para o Ocidente, de modo que, se o sacerdote quisesse olhar para o Oriente – conforme o costume cristão -, teria de ficar atrás do povo e, por conseguinte, olhar para o povo. A construção de muitas igrejas teria tido influência direta da Basílica de São Pedro.

Ora, a inovação litúrgica pós-conciliar tomou a peito a idéia de que a celebração deve se realizar versus populum, interpretando mal o sentido da basílica romana e julgando que isso corresponderia melhor ao conceito de “participação ativa”. Mas o Concílio Vaticano II não falou da orientação do celebrante em direção ao povo. Ratzinger pondera ainda que nem mesmo a ceia judaica, em cujo contexto Jesus deu a comer e beber seu corpo e sangue, tinha uma disposição em que o dirigente devesse tomar seu lugar versus populum. “Todos estavam sentados ou deitados em forma de sigma ou de ferradura”[2]. Ademais, o que o Senhor ordenou não foi a reiteração da ceia, mas o “novo” introduzido por ele. Por isso, ainda na Igreja primitiva, o “novo” rapidamente se separou do “velho”.

A orientação do sacerdote para o Oriente – ou para o Senhor, simbolizado no sol nascente – não se entendia, quer nas liturgias ocidentais quer nas orientais, como um “dar as costas para o povo”. Todos – o sacerdote e o povo – estavam voltados para a mesma direção – ad Dominum. Isso era pacífico, e o lugar do sacerdote não era objeto de controvérsias, conforme as palavras do professor Cyrille Vogel: “Se alguma vez se fez caso de algo, então foi que o sacerdote tinha de dirigir tanto a oração eucarística como todas as outras orações para o Oriente. Mesmo se a orientação do altar da igreja permitia ao sacerdote dirigir a oração ao povo, não nos podemos esquecer que, não apenas o sacerdote, mas também toda a assembléia se dirigia para o Oriente”[3].

[1] RATZINGER, Joseph. Introdução ao espírito da liturgia. Lisboa: Paulinas, 2001, p.51.
[2] RATZINGER op. cit., p. 58.
[3] Apud RATZINGER, op. cit., p.58-59

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Nota Mater Populi Fidelis: equilíbrio doutrinal e abertura teológica

A recente Nota doutrinal Mater Populi Fidelis , publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, representa um exemplo luminoso do equilíbrio eclesial característico do magistério autêntico. Ela não é nem maximalista nem minimalista: não pretende exaltar Maria acima do que a Revelação permite, nem reduzir sua missão à de uma simples discípula entre os fiéis. O documento reafirma com clareza a doutrina tradicional da Igreja: Maria cooperou de modo singular e insubstituível (por conveniência da graça) na obra da redenção realizada por Cristo. 1. A reafirmação da doutrina tradicional O texto recorda que a Virgem Santíssima participou de maneira única no mistério redentor — não como causa autônoma, mas como colaboradora totalmente dependente da graça. Sua participação é real e ativa, ainda que subordinada à mediação única de Cristo. Assim, a doutrina da cooperação singular de Maria na redenção e a doutrina da sua intercessão na comunhão dos santos permanecem plenamente válidas e reconhecid...

O título de Corredentora. Por que evitá-lo?

Dizer que o título de Corredentora aplicado a Maria não é tradicional, é ambíguo e deve ser evitado não significa diminuir nem obscurecer o singular papel da Mãe de Deus na história da salvação.  Maria foi ativa na obra da salvação, e o foi de maneira única e no tempo único da encarnação do Verbo, de sua paixão, morte e ressurreição. No entanto, a sua atividade é sempre uma resposta — uma resposta ativa — à graça e à absoluta iniciativa de Deus. O único autor da salvação é Deus mesmo. É o Pai, que envia o Filho e o Espírito. É o Filho, que, enviado do Pai, encarna-se por obra do Espírito e se doa até a morte de cruz, ressuscitando em seguida. É o Espírito do Pai e do Filho, que, enviado por ambos, age na Igreja e em cada coração aberto, humilde e sincero. Isso sempre foi claro para todo católico bem formado.  A disputa sobre a conveniência ou não do título Corredentora gira mais em torno de questões semânticas ou linguísticas do que sobre a importância e o lugar inquestionável...

Maria: tipo da Igreja, modelo na ordem da fé e da caridade e nossa mãe

Resumo do texto “Maria, tipo da Igreja, modelo na ordem da fé e da caridade e nossa mãe” – Pe. Elílio de Faria Matos Júnior ⸻ 1. Introdução O artigo propõe refletir sobre o mistério de Maria à luz do capítulo VIII da Lumen Gentium , mostrando-a como tipo (figura, exemplar) da Igreja, fundamentada em sua fé e caridade como resposta à graça divina. Nessa condição, Maria é colaboradora singular da salvação e mãe dos discípulos de Cristo e da humanidade. ⸻ 2. Maria, figura da Igreja No Concílio Vaticano II, havia duas tendências:  • Cristotípica: via Maria como figura de Cristo, acima da Igreja.  • Eclesiotípica: via Maria como figura da própria Igreja. Por pequena maioria, o Concílio optou por tratar Maria dentro da constituição sobre a Igreja, mostrando que ela deve ser compreendida a partir da comunidade dos redimidos. Assim, Maria pertence à Igreja como seu membro mais eminente, e não se coloca fora ou acima dela. Antes do Concílio, a mariologia frequentemente fazia paralelos ...