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Carta Encíclica "Ecclesia de Eucharistia" de S.S. o Papa João Paulo II

Padre Elílio de Faria Matos Júnior

Na Quinta-feira Santa (17-4-03), o Santo Padre João Paulo II, em cumprimento do ofício petrino de confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,32), publicou valiosa carta encíclica intitulada Ecclesia de Eucharistia - “A Igreja (vive) da Eucaristia” - e a endereçou aos bispos, presbíteros, diáconos, religiosos e a todos os fiéis leigos. A encíclica versa sobre o Sacramento da Eucaristia em sua relação com a Igreja.

O teor fundamental do documento pontifício consiste em reafirmar os pontos fundamentais da doutrina católica a respeito do maior dos sacramentos. Ao longo de toda a encíclica, o Santo Padre insiste na “fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável” (n.11).

Os principais pontos doutrinários contemplados foram os seguintes:

1) O valor sacrifical da Eucaristia. A Eucaristia torna realmente presente no tempo e no espaço em que é celebrada o único Sacrifício de Cristo no Calvário, pelo qual se operou a salvação do mundo. Pela Eucaristia, o Sacrifício de Cristo atinge os fiéis dos diversos tempos e lugares de forma sacramental. Através dos sinais do pão e do vinho transubstanciados no Corpo e Sangue do Senhor, o Sacrifício perfeito e redentor (outrora oferecido de modo cruento no Calvário) torna-se realmente presente (agora de forma incruenta ou sacramental) e “realiza-se também a obra da nossa redenção” (Lumem Gentium n.3). “Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do gênero humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes” (n.11) [o grifo meu]. A Eucaristia não é mera lembrança ou recordação do Sacrifício de Jesus. Entretanto, o único Sacrifício de Cristo não é repetido pela celebração da Eucaristia, mas tornado presente, atualizado no tempo e no espaço. O que se repete é a celebração memorial, não o Sacrifício. Cristo quis, de modo misterioso e admirável, associar a sua Igreja ao seu Sacrifício redentor, dando-lhe a possibilidade de, com Ele, oferecê-lo ao Pai, e também a possibilidade de oferecer-se a si mesma a Deus juntamente com o Sacrifício de Cristo. Tal mistério é grande: Mysterium fidei! Cristo e Igreja estão estreitamente unidos, pois o Sacrifício que nos salva torna-se presente na e pela Igreja. Ao realçar o seu valor sacrifical, o Papa reafirma que a Eucaristia está intimamente associada à Cruz, de modo que a Eucaristia “é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para ser alimento espiritual” (n.13). Nesse sentido, o Papa lamenta que, às vezes, haja uma compreensão reduzida do mistério eucarístico que o torna “despojado de seu valor sacrifical e vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa” (n.10). A celebração eucarística (a Santa Missa) é mais do que um mero encontro de irmãos; é o Sacrifício de Cristo tornado sacramentalmente presente, Sacrifício que nos une a Deus (ao Pai por Cristo no Espírito) de modo especialíssimo (pois somos associados a Cristo, que, na força do Espírito Santo, ofereceu-se como Vítima agradável ao Pai) e fundamenta a autêntica fraternidade. Por isso, nada se compara à Santa Missa, pois seu valor é o valor do sacrifício do Calvário, valor único, insubstituível e infinito. O Papa lembra ainda que o Sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Senhor, mas também o mistério da ressurreição, pois é por estar vivo e ressuscitado que Cristo pode tornar-se presente.

2) A presença real de Cristo na Eucaristia. A atualização sacramental do Sacrifício de Cristo em cada Santa Missa implica a presença real de Cristo na Eucaristia. Presença real não a título exclusivo, como se outras presenças não fossem reais, mas presença real por excelência, uma vez que na Eucaristia Cristo está substancialmente presente, o Cristo completo, Deus e homem (cf. n.15). Para indicar essa presença real de Cristo na Eucaristia, o Papa reafirma que o termo transubstanciação é conveniente e apropriado. Tal termo é mesmo já consagrado pelo magistério da Igreja. Transubstanciação indica que, após a consagração, a substância do pão e do vinho deixa de existir e passa a existir a substância do corpo e sangue de Cristo, Deus e homem. O termo substância aqui há de ser entendido, não como a física moderna o entende, mas como realidade ontológica fundamental, que define o ser ou a realidade íntima de uma coisa como tal, perceptível apenas pela inteligência. Isso quer dizer: apesar da aparência (acidentes) do pão e do vinho persistir (sabor, cor, quantidade..., o que definiria a substância para a física moderna), a sua substância (a realidade mais íntima que define o seu ser como tal, percebida aqui pela inteligência à luz da fé) é a substância do Corpo e Sangue do Senhor, ou seja, o seu ser já não é mas pão e vinho, mas o ser de Cristo. A presença real de Cristo na Eucaristia continua mesmo após o término da Santa Missa, e tal presença é o fundamento da adoração que os fiéis devem prestar às espécies consagradas.

3) A Eucaristia é também banquete. A Eucaristia é banquete porque aí Cristo se oferece como verdadeiro alimento: “a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade uma bebida” (Jo 6,55). Pela Eucaristia, entramos em íntima comunhão com Cristo, que nos comunica seu Espírito e faz-nos experimentar já na terra as primícias da plenitude das alegrias do céu. A Eucaristia é para nós penhor da ressurreição futura: “Quem come minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,24). A idéia de banquete pode sugerir familiaridade, mas a Igreja sempre se absteve de banalizar esta intimidade com o seu Esposo, recordando-se de que Cristo é seu Senhor e a Eucaristia, embora banquete, permanece sempre assinalada pelo Sacrifício do Gólgota, pelo sangue derramado na Cruz.

4) A Eucaristia e o sacerdócio ministerial. Embora todos os fiéis concorram para a oblação da Eucaristia em vista de seu sacerdócio real adquirido pelo batismo, é somente “o sacerdote ministerial (ou ordenado) quem realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo” (Lumem Gentium, n.10). O sacerdote ordenado participa de modo especial do Único e Sumo Sacerdócio de Cristo, agindo in persona Christi Capitis (na pessoa de Cristo Cabeça). Agir in persona Christi é mais que agir em nome de Cristo, é identificação sacramental com Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, sujeito de seu próprio Sacrifício. Assim, o Sacrifício eucarístico não pode ser oferecido pelas mãos de quem não tenha recebido o sacramento da Ordem. A celebração eucarística foi confiada por Cristo aos Apóstolos e a seus sucessores, os bispos (e os auxiliares destes, os presbíteros). A necessidade do sacramento da Ordem para a celebração da Eucaristia revela que a Eucaristia é um dom que vem do Alto e “supera radicalmente o poder da assembléia” (n. 29). Por isso, é de lamentar que, hoje, muitas comunidades fiquem privadas da celebração da Santa Missa por falta de sacerdotes ordenados. A celebração da Palavra não substitui o santo Sacrifício da Missa. Aliás, nada pode substituir o Sacrifício da Missa, pois, na verdade, quem o oferece é o próprio Cristo pelas mãos do sacerdote ordenado. Toca aos fiéis a obrigação de rezar pelas vocações sacerdotais. Os irmãos separados que não possuem o sacerdócio ordenado, que, por uma série de sucessão ininterrupta, remonta aos Apóstolos, não possuem também o sacramento da Eucaristia.

Além desses pontos fundamentais da autêntica doutrina católica sobre a Eucaristia, João Paulo II recorda também algumas noções relativas à Eucaristia, como a necessidade de o fiel estar em comunhão invisível com o mistério de Cristo (o que supõe o “estado de graça”) e visível (estar incorporado na S. Igreja, aceitando toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, sua profissão de fé e seus legítimos pastores, o Papa e os bispos, através dos quais Cristo governa visivelmente o seu povo) para participar dignamente da Eucaristia. A Eucaristia supõe, aprofunda e leva à plenitude tanto a comunhão invisível quanto a visível. O Papa ainda insiste no decoro com que se deve celebrar a Eucaristia: a arte (arquitetura, adornos, música) deve se colocar a serviço de tão grande Mistério e saber exprimir seu autêntico significado.

Por fim, o Santo Padre volta-se para Maria Santíssima, “a mulher eucarística” (cf. n.53), e ressalta que ela pode guiar-nos para o Sacramento da Eucaristia, seja por seu “sim” firme à Palavra de Deus (a Eucaristia deve ser aceita pela fé na Palavra de Deus, pois ultrapassa as possibilidades de compreensão da pura razão), seja por ter sido ela o primeiro “sacrário” da história, seja ainda por ela ter-se unido a Cristo durante sua paixão e, depois, através da participação da celebração eucarística presidida pelos Apóstolos.

A encíclica termina com o convite a não atenuar nenhuma das dimensões ou exigências do Sacramento da Eucaristia, professando sempre a verdade integral a seu respeito, verdade essa que recebemos do próprio Cristo através dos Apóstolos. “Esta fé (que nos veio dos Apóstolos) permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue” (n.27). Toda reverência não é bastante diante da Eucaristia, pois “neste sacramento se condensa todo o mistério da nossa redenção” (S. Tomás de Aquino, Summa theologiae III, q.83, a.4c). A verdadeira piedade eucarística há de ser buscada na “escola dos Santos” (n.62), que, mais do que ninguém, são conscientes da grandeza deste Sacramento e seus verdadeiros intérpretes.

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